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Lute como uma jornalista
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Lute como uma jornalista

A história da jornalista cearense que escreveu um livro e virou tema do Enem
Fernanda da Escóssia: livro de cearense terminou no Enem (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Fernanda da Escóssia: livro de cearense terminou no Enem

Imagine uma Minerva. É uma máquina tipográfica no final do século XIX e começo do século XX. Seu funcionamento baseia-se na colocação da matriz tipográfica com tipos, gravuras e clichês na parte que recebe tinta dos rolos. Agora, imagine um homem imprimindo um jornal, quase um panfleto, contra a monarquia em pleno reinado de Dom Pedro II e defendendo a república. Ele termina de imprimir, vai a uma reunião de maçons pela abolição e depois leva a família e os filhos à igreja para batizar o filho. O Pároco diz que não batiza seu filho. Ele leva a criança para a maçonaria e coloca o nome de João da Escóssia. Nascia a família Escóssia.

Corta e mostra novamente a Minerva. Agora aparece um homem de um pouco mais de um metro e setenta, corpulento, puxando uma perna. Ele passa horas preparando xilogravuras para ilustrar seu jornal. Corta. Um terceiro homem aparece. Ele sai correndo para cobrir o ataque de Lampião a Mossoró. A cidade vence. Lampião, derrotado, foge, mas perde um homem. É o cangaceiro Jararaca. O homem vai à cadeia e ouve Jararaca. Depois, imprime a entrevista e sai para vender o jornal.

Finalmente, o último homem. Usa bigode. É Forte. Ele imprime o jornal com ataques à ditadura militar. O homem lançou- se contra o candidato dos militares. Os adversários abrem uma casa bancária à noite e distribuem dinheiro para eleitores. Ele perde a eleição, o jornal e foge para Fortaleza. A terra de sua mulher.

Parece Érico Veríssimo de "O tempo e o vento". Pode ser uma nova série da Netflix. É a saga da família da jornalista Fernanda da Escóssia. Na hora de resolver o que fazer na vida adulta, ela decidiu que seria a quinta geração da família de jornalistas. A primeira mulher. Formada, trabalhou em O POVO, na Tv Verdes Mares e Tv Ceará.

Um dia resolveu ir embora para o Rio de Janeiro, como na música de Augusto Pontes. Trabalhou na sucursal da Folha, no Globo, ganhou prêmios, e resolveu ter uma visão mais científica de uma matéria que fez e refez durante anos: a história dos brasileiros sem um documento para chamar de seu.

Fernanda transformou sua reportagem em uma tese de doutorado que também virou um livro. Chama-se "Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documentos". No dia 21 de novembro de 2021, Fernanda recebeu dezenas de telefonemas lhe parabenizando. Seu livro tinha se transformado no tema da redação do Enem. Milhares de jovens brasileiros refletiram sobre o drama dos sem documentos a partir do seu texto, ela descobriu emocionada.

Quem quiser conhecer melhor o trabalho dessa jornalista cearense pode ler uma pequena introdução contada por ela logo abaixo e, também, assistir sua conversa com alunos do grupo de estudos Mídia, Cultura e Política da UFC, no Sindicato dos Jornalistas, 18 de agosto, às 18 horas.

Ah, ia esquecendo, acho que a trilha da minissérie poderia ser "Alucinação", de Belchior, com uma cantora gritando frases soltas da música:

"Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha.

Os humilhados do parque com os seus jornais.

Amar e mudar as coisas me interessa mais".

Família de jornalistas

F: Sou a quinta geração de jornalistas da minha família. Essa família é do meu pai, de Mossoró, no Rio Grande do Norte. "O Mossoroense" foi um jornal fundado, em 1872, pelo meu trisavô, Jeremias da Rocha Nogueira. Circula só on-line, agora. Era um jornal contra Dom Pedro II, que se envolveu em lutas republicanas e abolicionistas. Jeremias era maçom. Quando ele tem um filho e tenta batizá-lo, tem um entrevero com o pároco que diz que não o batizaria. Ele leva a criança para a maçonaria. Coloca o nome de João da Escóssia, um santo importante da maçonaria. João da Escóssia Nogueira assumiu o jornal no começo do século XX. Artista, ele introduz a xilogravura para ilustrar. Ele passa o jornal para os filhos, dentre eles, meu avô, Lauro da Escóssia, e meu tio avô, Augusto da Escóssia. Meu avô era um repórter da história. Ele cobre o ataque de Lampião a Mossoró, em 1927. A cidade faz a Resistência Mossoroense. Lampião é derrotado e tem que fugir. Um cangaceiro apelidado de Jararaca é preso. Lauro vai até a delegacia entrevistá-lo. Meu pai, Lauro da Escóssia Filho, também teve essa vivência no "O Mossoroense". Do lado materno, minha família é de Jaguaruana. Sou neta de jornalista, mas também de costureira. Minha avó materna, Maristela Freitas, ficou viúva aos 37 anos, com sete filhos. Quando meu pai foi pedir minha mãe em casamento, minha avó mandou um emissário a Mossoró. O emissário disse: "É um rapaz bom, mas tem um defeito: gosta de política". Ela disse: "Não tem problema, também gosto e isso, para mim, não é defeito, é qualidade". Cresci nessa casa de muito debate político, livro, jornal.

Trajetória no Ceará

F: Fiz Jornalismo na Universidade Federal do Ceará (UFC). Tive professores importantes. Dentre eles, Agostinho Gósson e Ronaldo Salgado, que passavam o entendimento do jornalismo e da liberdade de imprensa como fundamentais para a democracia. Comecei no O POVO. Fui repórter de Cidades e Política. Depois, fui trabalhar na TV Verdes Mares e na TV Ceará. Passei por jornal, mas tive uma experiência forte de audiovisual. Passei pela rádio O POVO. Sai do Ceará com 21 anos. Foi um período curto, mas produtivo. Trabalhava em redação, mas comecei uma pós em Teoria da Comunicação.

Rio de Janeiro: entre jornalismo e academia

F: Passei no mestrado para a UFRJ, em Comunicação e Cultura. Vim em 1994. Comecei a fazer freelas para a Folha. Fui contratada. Eram duas exigências: a leitura do mestrado e o mergulho na cidade, num período de muito conflito entre grupos armados. Em 1994, começa uma operação de intervenção na segurança pública. As forças armadas são chamadas. Cobri como repórter. Resolvi fazer o mestrado sobre a cobertura jornalística para esse momento. Analisei a cobertura dos jornais O Globo e O Dia. Fui aprovada. Sai da Folha só pra defender o mestrado e voltei. Continuei cobrindo a questão da violência, mas fui abrindo para a cobertura da questão racial, dos indicadores sociais brasileiros, infância. Em 2000, fui mãe.

Os invisíveis: do jornalismo para o doutorado

F: Continuei na Folha até 2004. Foi quando me deparei com os indicadores de pessoas sem documento no Brasil. A primeira matéria saiu em 1º de janeiro de 2003. Como repórter, conheci o ônibus, no Centro do Rio, que faz certidão de nascimento para pessoas que nunca tiveram documento. Em 2004, recebi o convite para ir para O Globo, ser editora assistente da editoria País. Fui editora adjunta e, depois, de política. Em 2015, fui demitida no começo do ano, mas, no fim, tinha passado no doutorado na Fundação Getúlio Vargas e para ser professora substituta da UFRJ. Embora fosse um tema difícil, que eu via o sofrimento das pessoas na pesquisa de campo, era um tema que eu dominava. Destaco o trabalho da orientadora, etnógrafa, Letícia Ferreira. Ela disse: "Você vai recuperar as trajetórias dessas pessoas. A gente não vai só contar as histórias, a gente vai refletir sobre o problema da documentação e o que ele dialoga com outras categorias". Algumas categorias foram traduzidas pelo próprio campo, como a síndrome do balcão, que é o que as pessoas falam que elas têm que ir "de balcão em balcão" do Estado. A etnografia vai além do jornalismo, mas há campos de interseção, como o trabalho de observação, a descrição.

Os invisíveis no Enem 2021

F: Minha irmã, Carla, me ligou: "Você está vendo o tema da redação do Enem? É do seu livro". Aí começou mensagem, todo mundo ligando, jornais, Globo, Estadão, CBN... Foram algumas surpresas. Como pesquisadora, em ver uma tese sair de um certo universo particular. Como mãe, sei que o Enem mobiliza saberes e sonhos. O tema passou a ser discutido.

Experiência na Piauí e mais projetos

F: Em 2018, trabalhava no Sindicato dos Professores da UFRJ. Fui trabalhar na revista Piauí, voltada para jornalismo narrativo e investigações em profundidade. É uma publicação mensal, impressa, mas tem o site. Sou editora digital. Estamos fazendo uma série sobre a má alimentação brasileira. Sigo nesse mundo entre a redação e a reflexão acadêmica. Voltei a dar aulas na UFRJ, de técnicas de reportagem e jornalismo político. Minha pesquisa foi premiada pela Associação Brasileira de Antropologia. Um texto saiu publicado no livro da ABA. Publiquei um livro de crônicas. A professora Márcia Vidal me convidou para conversar com os alunos do grupo de estudos Mídia, Cultura e Política da pós-graduação da UFC. É uma conversa para a turma, mas a gente vai fazer aberto ao público, no Sindicato dos Jornalistas, 18 de agosto, às 18 horas. Está todo mundo convidado!


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