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Do buraco da gia, de Mombaça, ao star system de Pantanal
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Do buraco da gia, de Mombaça, ao star system de Pantanal

Ator alcançou o sucesso após enfrentar infância difícil e ser arrebatado pela arte
Ator com Jesuíta Barbosa e Alanis Guillen nos bastidores de Pantanal  (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Ator com Jesuíta Barbosa e Alanis Guillen nos bastidores de Pantanal

Se fosse um conto, seria a mais perfeita tradução da miséria social do Nordeste. Os marcadores sociais de Silvero Pereira são resultados de uma sociedade profundamente injusta. Ele nasceu em Mombaça. Quem é muito novo não sabe que essa cidade entrou no anedotário político nacional quando o ex-presidente da Câmara, Paes de Andrade, assumiu a Presidência da República e, em ato contínuo, pegou um avião e encheu de políticos e jornalistas com destino a Mombaça, sua cidade.

A rua em que Silvero nasceu era a Buraco da Gia.Trata-se de uma metáfora popular que significa "o fundo do poço". A rua mais pobre e mais mal cuidada da cidade. Seu avô era um preto retinto que chegou à presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Sua mãe era filha de um manauara com preto. Seu pai, filho de uma indígena caririense com branco de olhos azuis.

Do ponto de vista de hierarquia educacional, sua mãe era uma lavadeira semi-analfabeta e seu pai um mestre de obras completamente analfabeto. Temos aí, renda, cor e capital cultural em grau zero da injusta estrutura social brasileira. Tudo conspirava contra o menino Silvero. Ao iniciar sua trajetória educacional, ele acrescentou mais um marcador de dificuldade de ascensão social: a sexualidade. Silvero cedo começa a lutar pela liberdade sexual.

Três coisas tornam a trajetória de Silvero o que chamamos de desviante: a crença de sua mãe na possibilidade de mudar sua vida pela educação, a tomada de consciência de Silvero das estruturas de dominação reproduzidas na práticas quotidianas e a força de tomá-las como motor de sua vocação artística e política.

Hoje ele está instalado no lugar de maior visibilidade do campo cultural do País, a novela das nove da Globo, e o que me espanta e me comove na sua história não é a ascensão meritocrática. Mas a força política das suas ideias e a sua inventividade artística. Depois que chegou ao topo não tem a arrogância dos vencedores que se negam a sujar as mãos na cozinha artística do dia a dia do teatro. Nem me parece demasiado ligado aos valores e benefícios do grande mainstreaming. Nem ostenta, tampouco, a submissão dos carreiristas que parecem dispostos a todas as abdicações e abjurações que requer a nova ordem do entretenimento.

É o Silvero de Bacurau e do porão do Teatro José de Alencar, teatro que ressurge sempre, com um furor artístico intacto e a coragem de lutar por uma única realização humana aceitável: tornar seu povo gente cidadã.

Como no diálogo clássico criado por Kleber Mendonça, em Bacurau.

Quem nasce em Bacurau é o que?

É Gente!

Abaixo uma conversa animada que tivemos numa terça à noite que parecia insossa.

Infância em Mombaça e o poder da educação

S: Nasci em Mombaça, há 40 anos, na Rua Buraco da Gia. O nome da rua é Paes de Andrade, mas é conhecida assim porque é a rua mais pobre da cidade. Meu avô materno era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Mombaça. Muito respeitado, um homem preto retinto. Ele casou com uma mulher indígena que saiu do Amazonas. Foram para Mombaça e casaram. Sou a junção de uma manauara com preto (parte materna) e uma indígena caririense com um branco dos olhos azuis (parte paterna). Minha mãe é uma mulher semi-analfabeta, lavadeira. Meu pai é um pedreiro analfabeto. O maior mestre de obras da região! Tiveram quatro filhos: dois homens e duas mulheres. Sou o terceiro. Uma família pobre, que morava numa casa de chão batido, emprestada. Não tinha casa própria, nem banheiro. Tomava banho no meio do mato. Estudei na escola pública. Não tinha roupas. O que tinha eram doações ou roupas de eleição. A gente ganhava camisa com a cara estampada de um candidato da época. Era quando a gente conseguia ter uma roupa nova. Tive que aprender cedo a trabalhar, com nove anos. Era questão de sobrevivência. Eu, meu irmão e minha irmã mais velha fazíamos esse trabalho de buscar água. Era época de uma seca difícil no Ceará. Tinha que andar 10 ou 15 quilômetros atrás de cacimbas. Quando chegava, uma fila quilométrica de pessoas entrando em buraco de quatro ou cinco metros de profundidade para pegar água potável. Com 12 anos, comecei a trabalhar no mercantil da cidade, na limpeza e na entrega de botijão de gás. Quando chega o convite da minha tia paterna para estudar em Fortaleza, digo para minha mãe: "É minha oportunidade". Com 13 anos, fui morar no bairro Damas. Minha tia tinha uma lanchonete. Ela me levou para estudar, mas também para trabalhar, de manhã e à noite. À tarde, ia para escola. Estudei no Mozart Pinto, escola pública no Montese, até o fim do fundamental. Conheci um projeto da Prefeitura de Fortaleza, o curso "Pró-técnico", que selecionava 80 alunos da rede pública para ingressar diretamente na Escola Técnica Federal. Fui contemplado em 1997. Tinha o ensino médio integrado com o técnico. Escolhi fazer turismo.

Arrebatado
pela arte

S: A Escola Técnica também prezava pela educação humana, artística e física. No primeiro dia de aula, tinha uma exibição do que acontecia na Casa de Artes: exposição, orquestra, peça. Fiquei chateado. Não estava ali para essa questão. Queria vencer, me tornar doutor, mudar de vida e a vida da minha família. Me apresentam uma peça. Nunca tinha visto. Fiquei arrebatado. Decidi: minha disciplina na educação artística seria teatro. Paulo Hesse, meu primeiro professor de teatro, apresentou o Curso Princípios Básicos de Teatro do TJA. Em 1998, ingresso no Princípios Básicos, com Joca Andrade. Continuo na Escola Técnica. Paulo me convida para a Companhia Dionisyos. Nesse período, a Escola Técnica está virando o Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet). Já estou no 3º ano do ensino médio, indo para o curso técnico, e surge a graduação em Artes Cênicas. Abandono o técnico de Turismo, presto vestibular e ingresso. Me formei em Artes Cênicas no IFCE.

Início da carreira

S: Concluí os Princípios Básicos. Fui convidado para a Companhia Lua. Paralelamente, estava conhecendo Rogério Mesquita e Yuri Yamamoto. Tudo entrelaçado. Vira o Grupo Bagaceira e entro. Entre 2010 e 2013, fiquei circulando pela Cia Lua e pelo Bagaceira. Em 2013, vou morar no Aquiraz para coordenar um curso de teatro iniciante na ONG Parque do Tapuio, do sociólogo André Guedes e da advogada Regina Jaguaribe, através do Instituto Federal. Monto o grupo Parque de Teatro. Foram dez anos de produção teatral. Veio o convite da Izabel Gurgel, gestora do TJA, para assumir uma turma noturna do Princípios Básicos, em 2009. Fico morando em Aquiraz, mas dando aula no TJA. Em 2012, terminando Artes Cênicas, conheci a obra do Caio Fernando Abreu. Sou apresentado ao conto "Dama da Noite". Decidi fazer uma adaptação para o teatro. Estreia no festival do Almeida Júnior, da Companhia Teatral Acontece. Ganho prêmios. Tem o Festival Palmas de Monólogos, da Francinice. Decido transformar a esquete num monólogo. Estreio e ganho! Me inscrevo no Festival de Guarabira e sou aprovado. Primeira vez que entro no festival sendo diretor, ator, produtor. Ganho como melhor ator. Izabel me faz uma outra proposta, que é criar o "Cabaré da Dama". Apresentar a peça no porão do TJA, depois dos espetáculos principais. Decidimos promover uma festa. As pessoas iam para a festa e a gente apresentava
a peça. Deu muito certo! Por conta disso, gera o Coletivo Artístico As Travestidas.

O cinema e a TV

S: O Ministério da Cultura criou o projeto "Interações Estéticas", com bolsas de R$ 60 mil distribuídas para artistas que quisessem passar seis meses fora de sua região, estudando. Sou aprovado e viajo para Porto Alegre, com o projeto "BR-TRANS". O objetivo era estudar a dramaturgia, a encenação e a atuação das Travestidas. A partir do momento em que eu criasse essa metodologia, iria montar uma peça de uma maneira consciente e não mais intuitiva. O "BR-TRANS" estreia em Porto Alegre, vai para o Festival de Curitiba. Recebi o convite para ir ao Rio de Janeiro fazer uma temporada no Centro Cultural Banco do Brasil. Explode nacionalmente. Na última apresentação, Glória Perez vai assistir. Ela diz: "Estou escrevendo uma novela e quero que você faça parte". Um mês depois me ligou, trouxe duas propostas de personagem e a gente optou pelo Nonato, a Elis Miranda. Em 2017, estreio "A Força do Querer". Era minha primeira experiência com televisão. Ela (Glória) me liga e diz: "Assisti todas as suas cenas, estou impressionada como pegou rápido o mecanismo e vou começar a escrever mais para você". O personagem vira um sucesso.

Um artista que mora no Ceará, Pantanal e novos projetos

S: Preciso ser de uma geração que diz para as próximas que a gente não precisa sair daqui. Fiz um filme no Ceará, "Bem-vinda a Quixeramobim", de Halder Gomes, que vai estrear este ano. Sou um artista que mora no Ceará, que faz questão de dizer que é possível continuar morando aí, mas trabalho 80% do ano no Rio-São Paulo. Trabalho. Não vivo aqui. O teatro continua sendo minha base. Busquei Andrea Pires para dirigir meu próximo trabalho, que vai estrear ano que vem. Vou estrear um show do Belchior neste ano. É um grande privilégio fazer parte de "Pantanal". Existe uma dívida com uma criança de 1982. Assistia televisão, era apaixonado. Hoje, estou dentro desse lugar. Meu personagem, há 30 anos, dizia que as pessoas podiam fazer chacota com a gente, com a nossa comunidade LGBTQIAP . Não tinha retaliação. Tenho a oportunidade de reescrever essa história. Estou, ainda, fazendo um ato político na novela.

Foto do Paulo Linhares

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