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A volta de Faustino
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

A volta de Faustino

O comboieiro da gastronomia cearense reabre sua cozinha na Varjota
Faustino reabre seu tradicional restaurante (Foto: PAULO LINHARES)
Foto: PAULO LINHARES Faustino reabre seu tradicional restaurante

"Lá em cima daquela serra,
passa boi, passa boiada
passa gente ruim e boa
passa minha namorada"
(quadra de desafio)

Faustino nasceu no Cariré e cresceu em Reriutaba. Reriutaba é uma pequena cidade de menos de 20 mil habitantes do noroeste cearense. Se você for em qualquer restaurante estrelado em São Paulo ou no Rio de Janeiro e perguntar aos funcionários quem é de Reriutaba, metade deles levanta as mãos. Filho de um pequeno sitiante, ele cresceu fazendo comboio em burros e jumentos do Ceará, passando pelo Piauí até o Maranhão.

O caminho é longo, mas ele lembra cada um dos lugares: "É cidade demais. A gente saia do pé da serra da Ibiapaba, ia por Campo Limpo, Santana, Carnaubal, Palmira. Subia a serra, chamava ladeira da Serra, ia até São Francisco (ele cita cerca de 20 nomes).... e seguia até o Maranhão, pra depois do Codó".

Comboieiro, explica Faustino, é uma pessoa que carrega produtos em burros, jumentos para vender. "A gente vendia foice, pano, chocalho, calça, camisa, na ida. E, na volta, vinha recebendo o dinheiro do que vendia e trazia fumo de rolo, cera de carnaúba, feijão, farinha. Ia carregado e voltava carregado".

Em 1970, na ditadura militar, a seca bateu forte no sertão do Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí. Faustino não suportou ver os pais passando fome e foi mais um retirante rumo ao Rio de Janeiro. Arranjou uma morada para trabalhar sem salário no Hotel Glória, erguido em 1920-22 para receber convidados que chegaram ao Brasil para as comemorações do Centenário da Independência, que ficou famoso pelos concursos de fantasia de carnaval.

No Glória, Faustino aprendeu tudo que sabe com o chef francês Alain Nesnad. Depois, se transformou no melhor saucier do Rio de Janeiro. Saucier é o encarregado de fazer os molhos na brigada da cozinha da gastronomia francesa. Passando pelos principais hotéis cinco estrelas do Rio, foi ser chef no Restaurante Ouro Verde, em Copacabana — um clássico na história da gastronomia carioca nos anos 70, pois foi um dos primeiros a preparar feijoada de feijão preto.

Um dia, recebeu uma proposta irrecusável para voltar ao Ceará. Depois de alguns anos como empregado, montou sua primeira casa. Foram, ao todo, seis ou sete que ele abriu e fechou. Por elas passaram Nelson Pereira dos Santos, Miucha, Ruy Guerra e Ed Mott e muitos outros..

Mas,ele continua um comboieiro. Foi para o Piauí, Teresina, e dia 7 de setembro está abrindo uma casa em Parnaíba. Na de Teresina, vendeu sua parte, depois vendeu sua marca.

Assim, o novo Faustino de Fortaleza, na Varjota, chama-se Cantinho do Cerrado. "Do cerrado, Faustino?" - pergunto intrigado, pensando: "Por que não do sertão?". "Rapaz, fiz a viagem ao cerrado, pelas bandas de Cuiabá, e adorei as carnes, as plantas. Vou cozinhar essas coisas do mar e do sertão do Ceará e umas coisas do cerrado". Faustino me lembra uma frase de Guimarães Rosa, dita por Raymundão, em Sagarana: "Devagar, teimoso, força o caminho, como sabem fazer boamente os bois".

Um vendedor ambulante

F: Nasci em Cariré e me criei em Reriutaba. Filho de agricultores, irmão de agricultores. Sou agricultor. Meu pai tinha uma terrinha. Eu era comboieiro, a pessoa que carregava coisas em jumento, em burro, desde os seis anos. A gente saia vendendo pelo Piauí, Maranhão… Foice, peças de pano, chocalho, calças, camisas. O que vendia, a gente vinha recebendo. Na volta, trazia cera de carnaúba, borra, feijão, farinha. Meu pai plantava milho, feijão, criava animais. Nosso forte mesmo era ir duas vezes ao Maranhão por ano. Dava tempo de agregar as viagens à plantação. Era cidade demais. Passava na região do pé da Serra da Ibiapaba, como Campo Lindo, Alto, Santana, Palmeira… Tambuatá, Lamberão, Espinhos, Giló, Andrade… Pedra Rachada. Passava por um povoado de nome São Francisco. Naquele tempo, só passava jumento, não tinha estrada. De lá, seguia para o Maranhão. Nosso ponto final era em Pirapemas. Uma vez, papai adoeceu. Pegou uma mini trombose no meio do mato. Chuva demais no Piauí, na Serra do Mulato. Só tinha uma casa, distante 30 quilômetros. Deus curou o papai naquele dia com chá de endro. Tinha uns pés de endro lá. Fiz um chá e dei pro meu pai, Pedro Faustino da Silva. Minha mãe era Maria Raimunda de Paiva. Sofro quando lembro que não tenho mais pai.

A fuga da seca

F: Chega a seca nos anos 1970 na região. Naquele tempo, não tinha bolsa família, nada. Velho aposentado, não tinha. Meus pais estavam em tempo de morrer de fome, sem comida. Com 17 para 18 anos, fui para o Rio de Janeiro, de pau de arara. Nunca estudei. Não tenho escolaridade. Só um pouquinho. Fui aprender mais no Rio. Fui para poder alimentar meus pais. Todo salário que ganhava, mandava pro meu pai e pra minha mãe. Nem capim seco tinha. Papai perdeu os jumentos. Tinha seis irmãos, sou o caçula. Três homens e três mulheres. Fui trabalhar como servente de obras. Queima de lixo na caldeira, faxina. Trabalhei de graça, um ano, no Hotel Glória. Nunca gostei de jogo, nem novela. Muita gente queria ver novela e jogo no quarto que eu estava. A gente dividia o quarto para cinco ou seis pessoas, no próprio hotel. O Hotel Glória foi meu pai, minha mãe, meu padrinho, minha madrinha… Tudo na minha vida. Muitos cearenses que foram para lá, humildemente… um italiano, que era o dono, deu esse apoio a todos. Tomou conta, deu moradia para nós, deu emprego.

Gastronomia no Rio

F: Trabalhava de 7 às 16 horas, normalmente, para ganhar meu salário mínimo. Tomava banho, jantava. Botava meu uniforme e ia trabalhar na cozinha sem ganhar. Só para aprender. Aprendi rápido. Comecei fazendo a comida do italiano. Um belo dia, com um ano, ele descobriu que eu estava trabalhando de graça. Me chamou lá, junto aos chefs do hotel e perguntou. Eu, com medo de falar para não perder o emprego, disse: "Realmente, é verdade, doutor. Sou do interior do Ceará, nunca estudei. Não sei se vou ser doutor amanhã, mas o que quero é trabalhar na cozinha. Por isso que tô trabalhando assim". Ele mandou somar um ano que trabalhei normalmente, com carteira assinada, mandou pagar férias, 13º, tudo… E mandou somar um ano que eu trabalhava — que eu digo de graça, mas não foi — com décimo, com tudo. Não tinha mala. O que eu tinha era uma calça de veludo. Amarrei a boca com a ruma de dinheiro. Ele ainda pediu para eu olhar para ver se estava certo.

Exemplo de vida

F: Cheguei no Ceará e paguei todas as coisas do papai e da mamãe. Eles deviam muito. Comprei jumento. Passei 30 dias aqui e voltei para o Hotel Glória. Quando cheguei, me deparei com várias fotos minhas de dois metros como um "exemplo de vida". O doutor fez. Deus me deu essa mão e cresci na minha vida. Tinha um francês, Alain Nesnad, que era meu chefe. Vamos supor que ele ganhasse R$ 12 mil como chef e eu ganhava três. Ele (dono do Hotel Glória) mandou eu ganhar R$ 6 mil e mandou o francês ir embora. Só que cheguei para ele e disse: "Doutor, não tenho condições de assumir uma cozinha desse tamanho". Tinha banquete de 2 mil e 3 mil pessoas. Fui embora com o Alain. O Alain foi para o Intercontinental, em São Conrado, e me levou como chef de partida. Me levou para casa dele, não me abandonou. Aprendi muito com ele. Fui para o Atlântico Sul, na Barra. Desenvolvi muito bem. Aí o Serginho Dourado com o Oscar Carvalho Engenharia, abriu vários restaurantes. Me botou como chef. Fazia cardápio, dava treinamento. Fui para o Hotel Ouro Verde, que naquele tempo ganhou todos os prêmios de melhor restaurante da América Latina. Tinha estrela Michelin. Fui trabalhar no Meridien, Saint Honoré, Maison de France,. Voltei para o Ouro Verde. Sempre como saucier, que trabalha só com molhos.

Os chefes de hoje

F: Na cozinha de um hotel, onde aprendi, tinha vários setores. O entremetier é a pessoa que trabalha com vários legumes, arroz, guarnições, massas… O rotisseur é aquela pessoa dos grelhados. O saucier trabalha do outro lado, com molhos. O garde manger trabalha no ar-condicionado, com saladas e molhos frios. Tem o aboyer, que é quem canta a comanda. Queria muito que as pessoas entendessem isso, que os donos de restaurantes treinassem suas equipes, para ter um profissional. Mas, não. Hoje, você vai numa cozinha, tem aqueles chapéus de hospital, aquelas boinas horríveis. O cara não usa nem avental e nem lenço no pescoço. A cozinha evapora muito o suor da gente. Se não tiver cuidado, o suor cai na comida. Ninguém quer saber disso.

Volta ao Ceará

F: Passei no Rio de Janeiro, com carteira assinada, 11 anos. Em 1986, voltei. Fui chamado pelos Damasceno para chefiar a cozinha do Hotel Praia Verde, na Praia do Futuro. Tinha um festival de chocolate à noite. Tinha feijoada dia de sábado. Venceu meu contrato. O Hotel Othon mandou me chamar. Recebi uma proposta para ser chef regional. Comecei a viajar por Pernambuco, Maceió. Um dia, cansei. Pedi as contas. Fui trabalhar no Velas do Cumbuco. Não sei o que houve. Cheguei, na época, com 10 mil dólares e voltei de carona porque não tinha um carro para ir. Um cara me engabelou e entreguei a Deus. Montei meu restaurante na Avenida Abolição. Não tinha placa, nada. Com três meses, cortaram minha luz, telefone, porque não tinha dinheiro para pagar. Fiquei pegando água e energia do vizinho. Um vizinho muito bom, me emprestou 1200 dólares, o Dick, americano. O primeiro dólar que fui trocar, dancei. Um amigo meu, taxista da Beira-mar, foi trocar e quando voltou veio com os dólares tudo ruim, riscado de caneta. Era uns dólares falsos que ele tinha e me enganou. Sem dinheiro, sem nada, e o cara ainda fez isso comigo. Chorei e pedi a Deus que tome conta. Troquei mais 100 dólares, fiz cartão e paguei minhas coisas. Criei sangue nos pés e no olho. Melhorei de vida. Com 600 dólares, me levantei. Um ano que eu estava lá, o dono do prédio me pediu o ponto. Aluguei ali na Pereira Valente. Esse americano foi meu fiador. Me ajudou. Melhorei. Comprei o prédio, casa, sítiozinho.

O novo Faustino: Cantinho do Cerrado

F: Vendi minha franquia para o pessoal de Teresina. Lá, chama Cantinho do Faustino. Tá muito bem! Depois, vendi 50% do meu nome. Hoje, não sou mais dono do Cantinho do Faustino. Acredito que, onde eu vou, não precisa de nome. O pessoal vai! (risos). Dia 7 de setembro, vamos inaugurar o Cantinho do Faustino em Parnaíba, no Porto das Barcas. Dia 25, estou formatando o Festival do Caju. Aqui, estou levantando a casa Cantinho do Cerrado. Não posso colocar Cantinho do Faustino. E aqui é Cantinho do Cerrado com comando do chef Faustino. Dei uma palestra em Cuiabá. Fui à Chapada dos Guimarães, almoçar lá. Quando parava na estrada, achei muita coisa bonita. Aí botei "Cantinho do Cerrado". Estou tentando trazer carne de pato, de capivara, veado, por causa do nome Cerrado. Caju, umbu, baru… Vou divulgar mais. Às vezes, vou num lugar, como até demais. Comida boa não é comida cara. Gosto de comida boa!

 

 

Foto do Paulo Linhares

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