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A menina que juntou os tais caquinhos
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

A menina que juntou os tais caquinhos

Natércia Pontes no País das Maravilhas
Natércia Pontes (Foto: arquivo pessoal)
Foto: arquivo pessoal Natércia Pontes

Natércia Pontes é filha de Augusto Pontes, o mais importante filósofo e intelectual cearense do século XX. Poderia ser só isso a biografia de Natércia, como a de alguns filhos de gênios. Mas ela apenas começou neste ponto. Augusto e Cristina, sua mãe, se conheceram em Brasília, num show de Ednardo.


O Pessoal do Ceará tinha ido tentar fazer a carreira artística, inicialmente, em Brasília. Eram os tempos ásperos da ditadura. Não podia dar certo. Mas Augusto começou a dar aula na Universidade de Brasília (UnB). E, dando aulas, montando peças de teatro, articulando o Pessoal do Ceará, ele meio que revolucionou a cidade e transformou a caretice do DF numa grande loucura.


Natércia e sua irmã cresceram em Fortaleza. Ela perdeu a mãe, uma das mulheres mais admiráveis que conheci em toda minha vida, muito cedo. O pai as criou com sua maneira intensa, sofisticada e sincera de ver o mundo. Só uma pequena história: um dia, o colégio o pediu para ensinar as meninas o dever de casa. Ele, então, propôs à coordenadora pedagógica: “Ótimo! Fazemos assim, ajudo a fazer as tarefas e vocês convencem elas a comer cebolas”.


A infância e adolescência de Natércia estão no romance “Os tais caquinhos”, editado pela Cia das Letras. Natércia ganhou o mundo, pois, como dizia Belchior, “o que pesa no norte, pela lei da gravidade, cai no sul grande cidade”. Ela viveu no Rio e decifrou a beleza e as neuroses da cidade que pariu Bolsonaro. Da experiência, nasceu o livro de contos “Copacabana Dreams” (uma edição competentíssima da Cosac Naify), que vai virar série.


Depois, ela avançou sobre São Paulo e a devorou com a sua fome de entender o mundo e corajosa franqueza intelectual. Casou, teve duas filhas e escreveu seu primeiro romance. O livro é um quebra-cabeça da vida de um pensador e duas filhas enfrentando as misérias do campo intelectual e artístico cearense.


Os dois livros de Natércia demoram a ser decifrados. Não porque sejam difíceis, mas por serem intensos e complexos na sua simplicidade. Beatriz Bracher conta que Augusto dizia sobre escrever fácil: “Camisinha lubrificada facilita, mas não ajuda”. Não ajuda a gozar, explico eu, na ignorância bem cearense.


Escrever bem, como diria Wittgenstein, “é ficar sempre alerta à distinção entre todas as trivialidades que você pode falar e todas as coisas essenciais que não pode”. Ninguém que a leia com a necessária generosidade vai deixar de encontrar nas sua obras sua curiosidade insaciável — o que Susan Sontag chamou de tensão entre a seriedade moral e amoral, e uma vontade de nunca ceder a essas verdades inquestionáveis que mantém o senso comum da intelectualidade brasileira.


Afinal, ela é a menina que juntou os caquinhos de uma vida precária vivida em Fortaleza, e mostrou que a coisa mais importante que ela de fato herdou de seu pai, foi, digamos assim, essa vontade de enfrentar grandes questões.


Para sintetizar, uma frase de “Alice no país das maravilhas” que define tudo: "Eu não sou louco, é só minha realidade que é diferente da sua". Vejam abaixo nossa conversa e leiam a obra de Natércia.


Primeiras literaturas


N: Terminei a faculdade de Rádio e TV no Rio, morava sozinha, em Copacabana, numa quitinete. Num daqueles computadores grandão, branco, escrevi meu primeiro livro. No período que fiquei entre Estados Unidos e Rio de Janeiro, tive “As mulheres” em Fortaleza. Acho o ensaio de uma estreia. A minha estreia foi o “Copacabana Dreams”. Quando comecei a ficcionalizar, com os blogs… Abri um blog ainda nos Estados Unidos, o “Natércia Soluça Lúcida”. Comecei a escrever uma coisa híbrida entre diário e ficção, afetada pelas minhas leituras. Sou muito esponjosa. O que estou lendo, vai muito para dentro de mim, e sai depois. Fui morar no Rio, já com esse blog, já com “As mulheres”. A escrita sempre foi onde eu não via as horas passarem. Passava a noite escrevendo. Quando vi, tinha um livro pronto, que era sobre Copacabana, que não deixa de ser um diário dos registros da minha vida, dos passeios na rua, do que eu via, das ideias que eu tinha enquanto morava lá, das conversas que eu ouvia, das cenas que se apresentavam praticamente prontas para mim.


Ida para São Paulo


N: Via São Paulo como um lugar em que o mistério não se acaba. Vim para cá em 2007. Até hoje não conheço a cidade. Me surpreendo. Fui morar com dois jornalistas, a Flávia Marrero e o Amauri Arraes, na Santa Cecília. Consegui um emprego na Abril. Fui morar sozinha em Pinheiros. Comecei a organizar, de fato, meu livro. Já tinha escrito há dois anos. Mandei para uma editora carioca, que não respondeu. Mandei para a Cosac e, em um ano, eles responderam, querendo publicar. Fiquei muito feliz.


Um pai interlocutor e os recomeços


N: Muitos dos contos do “Copacabana Dreams” eu lia para o meu pai. Ligava para ele de madrugada. Ele escutava atentamente, cada vírgula. Era muito bonito. É uma lembrança que vou levar para sempre comigo. Ele era meu interlocutor, mas ele morreu antes do livro ser publicado. Fiquei muito mal, dois anos deprimida. Fui levando a vida do jeito que dava. O livro saiu, terminei um namoro. Comecei outro, que culminou no meu casamento. Conheci o André em 2011. Veio tudo misturado depois: as minhas filhas e “Os tais caquinhos”.


Copacabana Dreams e pandemia


N: Foi uma recepção muito boa, ele foi indicado ao Prêmio Jabuti. Muitas críticas positivas. Até hoje as pessoas vêm falar comigo sobre o “Copacabana Dreams”. Teve adaptações para curtas-metragens. Me deu uma segurança. Falei: “Rapaz, acho que sou uma escritora mesmo”. Quis escrever um romance, só para teimar, porque o povo fala que conto é menor do que romance. Passei cinco anos escrevendo “Os tais caquinhos”. Lancei o livro aqui em São Paulo e no Centro Dragão do Mar (Fortaleza). Depois, tive um período morando na Argentina, quatro meses em Buenos Aires. Estudei espanhol e escrevi muito. Muito do meu romance foi feito lá. Tive uma gravidez super complicada, de risco e eu sangrava. Tive elas e fiquei com medo de contaminação. Vivia uma pandemia antes da pandemia. Aí veio a pandemia, que borrou tudo. Foi traumático. Tenho certa raiva, porque não queria ter que escrever sobre a pandemia, mas vai estar em qualquer coisa de qualquer autor que viveu isso. A pandemia vai deixar uma cicatriz, não tem como fugir.


Os tais caquinhos


N: Diferente do “Copacabana Dreams”, a crítica, de jornal e tudo… Não saiu muita coisa sobre “Os tais caquinhos”. E o que saiu foi negativo. No entanto, o número de leitores e a recepção dos leitores foi uma coisa assim… O público é muito diferente. Tem muita gente nova, inclusive adolescentes. Pessoas com mais idade, homens e mulheres de diferentes regiões. É uma alegria diária para mim. Foi muito maior do que eu esperava. Fiquei muito feliz e, ao mesmo tempo… Agora que é difícil. Escrever um livro depois de um que foi bem recebido.


Série e planos


N: Estou com uma ideia de romance, mas estou bloqueada, porque estou trabalhando muito, fazendo o roteiro de uma série. Fui chamada por causa do “Copacabana Dreams”. O diretor leu e quis me chamar como roteirista. Arrisquei. A gente está na primeira etapa do roteiro. Vai demorar, eu acho, dois ou três anos no mínimo para começarem a gravar. No roteiro, tem um jeito totalmente diferente. Está sendo um desafio trabalhar fora do meu jeitinho íntimo que criei para mim. Tem dado certo. Só que, assim, com gêmeas, trabalho, casa…


Livro sobre Augusto e saudade do pai


N: Tenho PDF que li uma coisa ou outra (sobre o livro “Augusto Pontes, O Amigo Genial”). Fiquei muito tocada com alguns textos. Outros, não consegui ler. Ainda é uma saudade em carne viva. Dói muito. Vou lendo aos pouquinhos, porque é muito imenso para mim.


A vida em São Paulo e híbrido de lugares


N: Minha vida é miseravelmente doméstica. Sou caseira. Era a vida que queria para mim. Estou realizada. Sou cearense, claro… Aqui, óbvio que não sou paulista. Abro a boca, as pessoas já veem que não sou daqui. Então, não sou daqui, mas, também, quando vou ao Ceará, não me sinto mais de lá. Fiquei meio híbrida, meio perdida, sem referência direta. Fui para Fortaleza, me senti eu mesma estranhando. Sai com 23 anos, estou com 42. Virei esse Frankenstein estranho, que tem muito do Ceará, mas que também tem muito dos lugares que vivi.

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