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Lira Neto o colecionador de palavras
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Lira Neto o colecionador de palavras

Escritor lança a biografia de Edson Queiroz, prepara o lançamento do livro sobre a arte da biografia e pesquisa dois novos biografados: Luiz Gonzaga e Oswald de Andrade
Lira Neto  (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Lira Neto

O cearense Lira Neto é um dos principais fenômenos editoriais do país. Ele constrói biografias narradas com perfeição e máxima precisão. Passou os primeiros 30 anos de sua vida tentando entender as pessoas e colecionando palavras para descrevê-las.

É filho de um caixeiro-viajante. "Vendia do penico à bomba atômica, de cidadezinha a cidadezinha do interior. O nome dele era Benedito, mas, jovem, se apaixonou pelo Bob Nelson, cantor country. A partir daquele dia, virou Bob Lira".

A mãe era uma funcionária pública que cedo enxergou a paixão do filho por boas histórias. "Uma mulher brilhante. No colégio, ela escrevia minhas redações. Foi minha primeira referência literária". Eram cinco filhos, sua mãe e seu pai se casaram duas vezes.

Lira cresceu na casa da avó em Caucaia, com "quintal generoso", de onde guardou lembranças. "Deitado de barriga para o chão naquele cimento queimado vermelho, do alpendre da nossa casa, lendo dicionário. Tinha um caderninho em que anotava. Assim como eu colecionava tampinha de garrafa e carteira de cigarro, também colecionava palavras. Tinha minha coleção de palavras favoritas, por eu não saber muito bem o que elas significavam ou pela forma esdrúxula da palavra ou pela sonoridade… Por algum motivo, dizia: 'Essa vai para minha coleção'".

Já na adolescência tinha a sensação de que estava perdido, tentando relacionar as palavras e a vida. Estudou Topografia na Escola Técnica, formou-se e desistiu no segundo dia de profissão. "Arranjei um emprego para fazer a topografia de uma barragem em Tianguá. Trabalhei dois dias como topógrafo. No segundo dia, voltei, decidido a fazer algo completamente diferente".

Lira foi cursar Filosofia na Faculdade de Fortaleza (Fafor). Abandonou o curso após alguns semestres. Fez Letras na Uece, foi técnico de raio-x e balconista de uma loja de peças de motocicletas até montar, com um dos irmãos, um trailer para vender sanduíches na avenida Bezerra de Menezes. "Falimos logo na sequência". Deu aulas nas periferias de Fortaleza, "com duas faculdades abandonadas e nenhum diploma", conta.

Vercilo, um amigo professor, disse: "Tem uma vaga de revisor no Diário do Nordeste". "Fui fazer a prova e passei. Já estava perto dos 30 anos, fiz vestibular para Jornalismo na UFC. Passei. No 2º semestre, já tinha saído da revisão do Diário para a redação do O POVO, em 1990".

No O POVO, a mudança foi vertiginosa: editoria de economia, editor do Vida&Arte e editor do caderno Sábado. Fez uma matéria sobre Rodolfo Teófilo e disse: "Alguém tem que contar essa história". E contou, em "O poder e a peste: a vida de Rodolfo Teófilo" (1999). Então ele descobre que quer apenas escrever histórias como aquela e pede demissão.

"Quando voltei do cargo de Ombudsman, não queria mais ficar na redação. A Albanisa (Dummar) me convidou para ir para a Fundação Demócrito Rocha (FDR). Depois de dois anos, tendo publicado 80 livros, de autores acadêmicos ou não, de literatura infantil, de crônicas, pedi demissão. Conheci a Adriana (Negreiros), que tinha recebido o convite para ir para Salvador. Depois fomos para São Paulo", diz.

Trabalhou no livro sobre Castello Branco, "Castello: A marcha para a ditadura". Depois, vieram as biografias de José de Alencar, Padre Cícero, Getúlio Vargas e Maysa. É inegável que Lira Neto une extremo rigor na coleta de dados a uma perícia narrativa envolvente e crível.

O que nos surpreende nos seus livros é mais raro: a capacidade de narrar o indizível. Um dia lembrou Wittgenstein: "O que não se pode falar, melhor calar". Lira colecionou tão bem as palavras que vem na contramão desse conceito de indizível, com uma ideia bem freudiana: aquilo que não vira palavra, nos faz refém dos acontecimentos. O que há de indizível nas vidas seria, assim, o motor da sua curiosidade e da sua busca narrativa.

"Edson Queiroz - Uma Biografia"

L: A biografia do Edson Queiroz foi pedido pela família, encomendada. Na primeira reunião, eu disse: "O livro é meu e vocês têm que respeitar isso. Tudo o que eu fizer que conste no livro, vai estar lá". Um dos netos, falando pela família, disse: "Se não for assim, não queremos. Uma biografia chapa branca ninguém lê. Fique à vontade". Quando bati o olho numa foto do Edson Queiroz, que estava no escritório dele, disse: "A capa é essa". É uma foto dele a rigor, mas sentado numa cadeira, com uma cara de sacana, levantando a perna da calça, puxando a meia todo malandro, com um cigarro politicamente incorreto na boca. Então, disse: "É esse Edson". Esse cara irreverente, que era impulsivo. Ao mesmo tempo que era uma fera nos negócios, era um homem absolutamente informal. O livro está aí. Tem na Amazon, tem em eBook. Se fosse de outra forma, eu não teria assinado o livro. É um livro que me orgulho, que tem dois grandes personagens: o Edson, claro, e o outro é Fortaleza. Ele cresceu junto com a cidade, anteviu alguns movimentos e acelerou outros. A cidade se forma quando ele também está se formando como empresário. Há um personagem secundário quase tão grande quanto o biografado que é Fortaleza.

"A arte da biografia: como escrever histórias de vida"

L: Comecei a dar curso sobre escrita biográfica na Universidade do Porto, durante dois ou três meses do ano passado. Um aluno sugeriu publicar. Fiz uma versão on-line do curso no começo desse ano. Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, disse: "Vamos fazer um livro sobre isso". Reescrevi as notas, desenvolvi. Ao mesmo tempo que o subtítulo diz "como escrever histórias de vida", o que pressupõe um tom um tanto quanto de manual didático, é uma reflexão sobre o próprio ofício da biografia. Tem um hibridismo. Ao mesmo tempo que tem algo prático, também é algo reflexivo, a partir da minha própria experiência.

Biografias em construção: Oswald de Andrade e Luiz Gonzaga

L: Oswald de Andrade é um personagem que venho trabalhando. É um personagem cujo pensamento ficou, do ponto de vista da recepção crítica e acadêmica, muito restrita ao modernismo de primeira hora. Como se ele fosse um ativista de 1922 e se resumisse a isso. O Manifesto Antropofágico, a tese de Livre Docência na USP sobre patriarcado, são temas tão atuais... O pensamento decolonial, o combate ao patriarcado, ao capitalismo e ao colonialismo. É muito o que acredito. Oswald de Andrade é uma paixão juvenil. Quando era jovem, fui poeta marginal. Fazia fanzines e vendia. Oswald de Andrade sempre foi referência. Hoje, olho não só para a poesia, que acho fantástica, mas principalmente para os manifestos. Usando a metáfora da antropofagia, dizia que o antropófago é aquele que devora o outro não por odiar o outro, mas aquele que quer que o outro faça parte dele. Ele, ao mesmo tempo, continua sendo ele. Por outro lado, também é o outro. Por que faço biografias? Para conhecer o outro, para conhecer o diferente de mim! Outro personagem é Luiz Gonzaga, que é um reencontro com minha origem nordestina. O Luiz Gonzaga é este herói moderno, com essa carga de nordestinidade, com aquela sanfona, aquele chapéu de couro, aquele gibão. Projetos não faltam. A biografia é tentar entender o personagem naquele contexto.

Euforia da ignorância

L: Sou movido por uma coisa que Carlo Ginzburg chama de "euforia da ignorância". A euforia da ignorância é que me leva a tentar conhecer uma coisa. Não saber nada de um assunto e tentar compreender o máximo possível daquilo.

Foto do Paulo Linhares

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