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Retratos da memória: o Dragão, os cinemas e Kleber Mendonça
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Retratos da memória: o Dragão, os cinemas e Kleber Mendonça

Voltei ao Dragão para reencontrar meu amigo Kleber Mendonça. Desde 2020 não ia ao cinema. Foi a saudade de Kleber que me trouxe pelo braço, como diz aquele frevo de Capiba
Registro de 2012: Paulo Linhares e Kleber Mendonça Filho durante solenidade de assinatura do convênio entre o cinema do Centro Dragão do Mar e o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Foto: acervo paulo linhares)
Foto: acervo paulo linhares Registro de 2012: Paulo Linhares e Kleber Mendonça Filho durante solenidade de assinatura do convênio entre o cinema do Centro Dragão do Mar e o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco

Conheci este pernambucano quando ele era mais tímido, recatado. Minha amiga Silvana Meireles, uma espécie de embaixadora da cultura pernambucana e que dirigia a cultura na Fundação Joaquim Nabuco, foi quem me apresentou. Kleber era curador-programador do cinema da Fundação.

Quando reassumi o Dragão, em 2012, os cinemas estavam arrasados fisicamente e conceitualmente. Tinham sido arrendados a um proprietário do cinema de shopping que foi embora e levou até seus projetores, que de fato pertenciam a ele naquele momento.

Tive de começar do zero e trouxe Kléber para fazer o que então chamamos cinemas do Dragão do Mar/ Fundação Joaquim Nabuco. O projeto era Kleber formar dois novos curadores saídos das fraldas da juventude cearense. Depois de uma dura disputa, Pedro Azevedo e Salomão Santana foram os escolhidos e, até hoje, são seus mais fiéis discípulos no Ceará.

Em 95, quando criei o Dragão, pensei num mix de atividades artísticas que deveria trabalhar em cada uma das linguagens e fui selecionando interlocutores que pudessem pensar comigo cinemas, museus, teatro, etc.

Para pensar o museu de arte, os interlocutores de todos os momentos eram Paulo Herkenhoff e Max Perlingeiro. Na cultura popular Valéria Laena. No Teatro, Aderbal Freire-Filho e B. de Paiva. Na formação artística, Capovilla e Orlando Senna. Na Cominação Demócrito Dummar e, na direção de loucura geral, José Wilker.

Na comunicação, Demócrito Dummar. Eram muitos e um dia vou lembrá-los. Aliás, nessa volta de 2012, resolvi homenagear José Wilker chamando um dos cinemas com o nome dele. Liguei e o convidei para vir ao Ceará. Ele ficou comovido e ficamos de combinar sua vinda uns dias depois. Passados três dias, ele teve um infarto e me deixou sem um grande parceiro das noites na Praia de Iracema.

Quando as primeiras imagens de "Retratos Fantasmas" surgiram na tela, me lembrei das longas conversas com Kleber de como se constrói uma sala de cinema. Hoje, quando me convidam para uma palestra sobre gestão cultural a partir da experiência do Dragão, sempre tento explicar que para se pensar cultura é preciso entender que uma política cultural é antes de mais nada fruto do necessário diálogo com grandes mestres do pensamento do passado (nos livros) no presente.

O Dragão é uma espécie de casa de diálogo onde as vozes de cada um deles se erguiam das páginas ou pessoalmente. É a busca jubilosamente obsessiva da criação artística e suas verdades que constitui a única finalidade autêntica de qualquer política ou ação cultural.

Ler, reler apaixonadamente, dialogar, é promover essa finalidade. Uma grande instituição artística é aquela onde a necessária arte da leitura das linguagens artísticas e do diálogo ocupa um lugar central. O Dragão era exatamente isso. Desde então, não encontrei muitas outras instituições culturais parecidas.

A matéria-prima é imensa e variada, naquele princípio eu tinha de decidir se o Museu de Arte iria se chamar de arte contemporânea ou simplesmente de arte (cada opção era uma grande responsabilidade), as cores do dragão (Fausto usou inicialmente cores ocres e eu insisti no branco) a primeira exposição do Memorial da Cultura Cearense (eu pensei em duas: vaqueiros e jangadeiros, o que me parece ser a dialética a cultura cearense, o sol do sertão e o mar do litoral), o cineteatro (nao tínhamos dinheiro para o grande teatro e resolvemos fazer provisoriamente o cineteatro, o campo teatral lutou e acabou ficando só teatro), não tínhamos dinheiro para o anfiteatro de apresentações musicais e grande palestras, o que fazer? (Sérgio Mota, o ex-ministro nos salvou e morreu logo depois da inauguração).

É difícil pensar nessas decisões e os caminhos a seguir sem pensar no centro cultural como uma universidade das artes.

George Steiner fala que o que faz uma grande universidade (ou um centro de cultura) é que ela pode se permitir experimentar. "O verbo se permitir não em sua conotação financeira, mas para lembrarmos que uma universidade é livre para cultuar e mostrar a independência de pensamento, a vontade de se afastar da tradição, à disposição de se arriscar, se assim quiserem ,que podem derivar de se ter uma vida que é praticamente imortal". É por isso que quando me convidam para falar de gestão cultural e esperam o elogio do homem metódico, eu falo em filosofia, humanidades, pensamento, criação e loucura.

Em "Retratos Fantasmas", Kleber apresenta uma crônica calorosamente cordial e muito bem documentada dos espaços do cinema na sua vida. Os retratos que ele seleciona são facsímiles das passagens comoventes do cinema no apartamento em que ele cresceu e nos cinemas do centro do Recife que ele frequentou. Como o pessoal do Cahiers du cinéma, Kleber passou quase toda sua vida assistindo filmes, fazendo curadoria e programação e só depois de uma sólida reflexão se torna cineasta. Em toda sua obra, o quadro mental do crítico e curador desempenha um papel inevitavelmente seletivo e ordenador.

Nas histórias de Kleber, o processo de refração é duplo, a memória passa pela luz de um refletor e pelo

olho de uma outra câmera de maneira que a medida que os fatos da destruição do cinema do centro do Recife são apresentados, é possível pensar em como o cinema afetou a concepção da arte ocidental.

Kleber deixa esse tema central sem resposta direta. Mas ele é o centro de tudo. Pensar a morte de um cinema feita pelos nazistas é uma reflexão ao mesmo tempo terrivelmente pessoal e inteiramente comunal (de todo o povo). O que me fez pensar na polêmica do mausoléu do Castelo Branco. Em todo mundo,Chile, Alemanha, Argentina, Bélgica, França, diante do dilema de destruir e passado ou discuti-lo, se optou pela segunda decisão.

O Palácio é da Abolição, como discutir a abolição no Ceará (Dragão, do Mar, José Luiz Napoleão, Preta Simoa) num mausoléu de um ditador? Taí o desafio. Uma vez tirei o avião em que Castelo morreu que ficava na frente do MIS. Achava macabra a manutenção do aparelho. Mas recomendei ao governador (Tasso) que fizesse uma releitura crítica do Mausoléu. Sem destruir a obra de Sérgio Bernardes. No centro cultural Gabriela Mistral, em Santiago do Chile, todos os lugares onde Pinochet passou e tudo que

ele disse é mantido e relido criticamente.

O Museu da Memória e Direitos Humanos, também em Santiago, tem toda a lembrança da ditadura como forma de "lembrar a morte", na famosa expressão de Heidegger. Reunir elementos documentando a tragédia da ditadura e as condições que cercaram tal ação é chegar ao cerne da abolição pela qual lutamos e nunca conquistamos até hoje.

 

Foto do Paulo Linhares

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