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Roberto Calasso e Max Perkins: editar ou morrer
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Roberto Calasso e Max Perkins: editar ou morrer

O livro, segundo os dois melhores editores do mundo
Foto: Divulgação/Editora Intrínseca "Max Perkins: um editor de gênios" é uma biografia de Perkins escrita por A.Scott Berg, que ganhou o Pulitzer

Sempre trabalhei profissionalmente como um editor de conteúdo. Fazendo teses, livros (o primeiro livro da Edições Demócrito Rocha, "História do Ceará", coordenado pela Professora Simone de Sousa, aquele que tem um farol na capa, foi obra de Albanisa e Demócrito e eu fiz a edição gráfica), programas de TV (Porto Mucuripe e quase todos da TV O Povo na sua fundação), jornais (o meu primeiro, aos 15 anos com minha irmã Ângela, se chamava etc, etc, etc e seu principal colaborador era Carlos Emílio Correia Lima). Cadernos de Cultura (o Sábado do jornal O Povo, com Demócrito, Lira Neto e Luís Sérgio Santos), revistas (A do Dragão do Mar, com Isabel Andrade) e inúmeros shows, prêmios, exposições e festivais (Uma noite em 68, Viva a Memória o Doutor do Baião, Carneiro, Maloca Dragão).

Não os relato por gabolice. Mas porque são projetos singulares, criados sob o signo da precariedade do Ceará.

Então, editar é uma das minhas fascinações. Embora editar, no Ceará economicamente muito pobre, os trabalhos tenham sempre a marca dessa precariedade material.

Aqui, hoje, quero apresentar aos leitores (que, curiosamente, parecem se multiplicar a cada dia) dois livros que têm me deixado insone e arrebatado, já que são sobre os dois melhores editores de livros do mundo.

Um deles é uma espécie de autobiografia intelectual de Roberto Calasso, um dos mais refinados intelectuais italianos do século XX, e o outro sobre o americano Max Perkins, a maior lenda do mercado editorial americano.

O livro sobre Roberto Calasso foi escrito pelo próprio Roberto, chama-se: "A marca do editor".

A edição brasileira é da Âyiné, uma ótima editora de Belo Horizonte, e é um livro mágico, bonito e tão refinadamente escrito e editado, que temos vontade de comer. Um biscoito fino, como diria Oswald de Andrade.

Roberto Calasso é um europeu diabolicamente, insidiosamente, magistral. E é por existirem alguns tipos como ele que eles criaram o paradigma das letras e definiram o que é bom e o que é ruim.

Dois conceitos fundamentais são apresentados por ele logo nas primeiras páginas. O de livros únicos. E o das capas como Écfrases.

Ele define assim: livro único é aquele em que imediatamente se reconhece que aconteceu alguma coisa ao autor e essa coisa termina por se depositar em um escrito.

Mas não é só essa a característica, "os livros únicos eram, portanto, livros que haviam corrido um grande risco de não chegarem a se tornar livros."

Roberto, com seu guru Bazlen, que morreu cedo e com ele pensou quase tudo na sua editora, a Delphi, editou Nietzsche, Edmund Gosse, Chuang-Tzu (o verdadeiro mestre de Bazlen), Kafka, Jan Potocki e por aí vai uma lista enorme de livros marcantes.

O segundo conceito, é que a capa de um livro tem que ser o avesso de écfrase. Écfrase era o termo que se usava, na Grécia antiga, para indicar o procedimento retórico que consiste em traduzir em palavras as obras de arte. Para Roberto Calasso, uma capa tinha que ser uma imagem capaz de traduzir em imagem as palavras do livro.

Ora, diz ele, o editor que escolhe uma capa - que saiba, ou não - é o último, o mais humilde e obscuro descendente da estirpe daqueles que praticam a arte da écfrase, mas aplicada desta vez ao avesso, tentando encontrar o equivalente ao analogon de um texto em uma última imagem.

O segundo livro, "Max Perkins: um editor de gênio" (Editora Intrínseca}, é uma biografia de Perkins escrita por A.Scott Berg, que ganhou o Pulitzer.

Maxwell Evarts Perkins era desconhecido do grande público, mas para os que viviam no mundo dos livros era nada mais nada menos que o descobridor de F.Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Tomas Wolfer.

Max Perkins, para quem "Não há nada mais importante do que um livro", lia "Guerra e paz" - seu livro de cabeceira - para suas filhas, e virou uma lenda por defender que o momento em que um escritor mais precisa de seu editor é nos meses ou anos em que se dedica à sua escrita.

Ele os recebia a qualquer hora, ajudava financeiramente, escrevia longas cartas, administrava desavenças, como entre Fitzgerald e Hemingway, sugeria títulos, inventava tramas, desafiava a tentar o que ainda não tinham tentado. Foi assim com Taylor Caldwell e "Os abutres" e "A dinastia da morte", entre outros; com Joseph Stanley Pennell , com "O quinto selo", romance antissoviético de Mark Aldanov, com "A um passo da eternidade", de James Jones, mantendo-se sempre fiel à sua máxima: "adotar um autor no início ou relativamente próximo dele e publicar não este e aquele livro, mas sua obra completa", ao que Berg acrescenta "Assim, era possível correr o risco de ter prejuízo com certos livros compensando-o com o lucro obtido com outros" .

As primeiras dez páginas da biografia de Perkins lembram mais Dashiell Hammett, do que a biografia de um editor.

Scott Berg descreve Perkins indo fazer uma palestra.

" Aos 61 anos, Perkins media 1,78 metro e pesava 68 quilos. Aparentemente, o guarda-chuva que carregava pouco o protegera — ele estava ensopado, e o chapéu encharcado lhe cobria as orelhas. Um brilho rosado coloria o rosto comprido e estreito, suavizando seus ângulos. O rosto era dominado por um nariz forte, rubicundo, reto quase até a ponta, onde se curvava qual um bico. Os olhos tinham um tom pastel de azul. Wolfe escrevera certa vez que neles havia "uma estranha luz nebulosa, uma espécie de ar marinho remoto, olhos de um marujo da Nova Inglaterra após vários meses navegando para a China em um veleiro, como se algo tivesse neles mergulhado e se afogado".

E descreve a audiência da noite assim:

"Dentro da loja, trinta jovens, homens e mulheres, o esperavam. Eram alunos de um curso de extensão sobre edição de livros que a Universidade de Nova York pedira a Kenneth D. McCormick, editor-chefe da Doubleday & Company, para ministrar. Todos estavam ansiosos para entrar no mercado editorial e vinham frequentando as palestras semanais.

Em certos aspectos, Perkins não mostrava compatibilidade com a profissão: tinha péssima ortografia, sua pontuação era idiossincrática e, quando se tratava de ler, segundo ele mesmo admitiu, "era lento como uma tartaruga". Mas tratava a literatura como questão de vida ou morte. Certa vez escreveu para Thomas Wolfe: "Não há nada tão importante quanto um livro."

É isso: Roberto Calasso, um intelectual sofisticado e culto, e Max Perkins, um homem sensível, de uma intuição fulminante, tinham uma coisa em comum: para eles um livro era uma questão de vida ou morte.

É como um médico que faz uma cirurgia difícil. Um cowboy num duelo. Um caso de amor em que, em caso de fracasso, é melhor morrer.

Se era assim no século XX, imagine hoje, num tempo da glória do supérfluo, dos influenciadores, da estupidez da fama imediata, um grande livro, que tem a marca do editor, que forma nossa sensibilidade e nossa cultura é, mais do que nunca, uma tarefa de homens e mulheres excepcionais.

Foto do Paulo Linhares

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