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Os melhores livros cearenses de 2023
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Os melhores livros cearenses de 2023

Jóias raras que um mercado editorial pobre e frágil publicou
Historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927)  (Foto: Domínio público)
Foto: Domínio público Historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927)

Para completar o balanço que venho fazendo sobre o que aconteceu no ano de 2023, vou fazer aqui um ranking dos bons livros cearenses.

Vamos começar com uma definição: o que é "livro cearense"?

São livros editados e escritos por quem vive no nosso campo cultural. Dois livros apontados aqui fogem um pouco, aparentemente, à definição: os livros de Lira Neto e Socorro Acioli. Os inclui na lista porque Lira e Socorro ainda militam no frágil e periférico campo cultural cearense, embora sejam hoje nomes nacionais impulsionados pela indústria editorial paulista.

Num livro que acabei de escrever (Pericêntricos) criei um modelo para explicar esse fora/dentro e esse dentro /fora dos nossos artistas: translação, o movimento realizado pela terra em torno do sol. Já a rotação consiste no movimento da terra em torno do próprio eixo.

Translação são os artistas e ou projetos que estão com a força da indústria cultural de São Paulo/Rio. Rotação são artistas e projetos culturais que se produzem no Ceará e são impulsionados pelo próprio campo e público local, mesmo quando chegam a um campo nacional e internacional.

Certo, vai dizer meu leitor lá da Praça do Ferreira, enquanto espanta um vira lata que lhe lambe o sapato, recém engraxado, mas o que diabo é esse tal de campo cultural?

Campo é um conceito criado pelo francês Pierre Bourdieu que praticamente refunda a sociologia e a antropologia cultural contemporânea.

Intervalo teórico. O campo, segundo Bourdieu, é um espaço social que tem suas próprias regras, princípios e hierarquias. É definido a partir de diversas redes de relações e agentes que se posicionam de maneiras distintas e disputam forças simbólicas, políticas e econômicas, estabelecendo conflitos e tensões entre seus membros.

O livro cearense está situado no campo dos produtos culturais produzidos nesse espaço de batalhas simbólicas maior chamado campo cultural brasileiro. O Ceará é uma periferia (nordeste) da periferia (São Paulo e Rio) da cultura mundializada.

É uma sociedade ágrafa (sem domínio do código escrito,que passa muito lentamente a decodificar , ler, e codificar, escrever.) e anti intelectualizada (a elite cearense, por sua tradição comercial e de catolicismo oral tem ojeriza a qualquer formulação teórica ou conceitual).

Conta o folclore escrito em torno do genial Capistrano de Abreu (nascido no Columinjuba, Maranguape, onde tomei muito banho de açude) que ao se mandar para sempre do Ceará, ao subir numa jangada, na Praia de Iracema, que a levaria barco maior rumo ao Rio de Janeiro, bateu os pés no chão da embarcação e disse: essa terra nunca mais verá meus pés. E assim foi. Nunca mais pisou o Ceará.

Quando Capistrano se mandou, Fortaleza tinha cerca de 20 mil habitantes, e duas livrarias.

Hoje, tem quase três milhões de habitantes e quatro livrarias de verdade, duas da rede Leitura (Iguatemi e RioMar) e duas Arte e Ciência (Benfica e Centro).

Do que fugia Capistrano? De um campo cultural frágil, asfixiante, sem livrarias, bibliotecas,leitores, e autonomia mínima diante do campo político, para o exercício da vida intelectual.

Obviamente muita coisa mudou, os esforços bem sucedidos de educação a partir da ideias de meu pai (Edgar Linhares) para leitura como base de uma escola pública (como a elite intelectual e política tem se esforçado para reduzir essas ideias a certas regras econômicas e de gestão) nos tiraram dos últimos lugares de indicadores de educação básica. Mas cadê a leitura na escola média?Cadê bibliotecas? Cadê política de livro?

O livro no Ceará não provoca distinção social. Escrever, editar, criticar,é uma atividade que aparece como coisa de diletantes (um jornalista, amigo, escreveu semana passada que o Ceará gasta muito espaço discutindo cultura.Morte aos cadernos de cultura, deve ser seu sonho.)

Enfim,lançar um livro, numa sociedade de tradição ágrafa e anti intelectual é coisa de loucos.

Então vamos à lista dos malucos que criaram milagres que chegaram até minha biblioteca.

Ficção e crônica

O relojoeirante calibra
ponteiros nas paragens

Frederico Fontenele Farias.

Editora Prêmius.

O livro do crítico de cinema e jornalista Frederico Farias é surpreendente. O relojoeirante Herontino Henoc testemunha e até protagoniza acontecimentos, como diz o autor, na Forjadeira (Fortaleza) no largo do Herreiro e centrípeto da população.

O livro de Fred Farias provocou em mim o mesmo impacto que o Parabelum de Gilmar de Carvalho e A Cachoeira da Eras de Carlos Emílio Correia Lima (que Augusto Pontes amava, mas não perdia a piada e chamava Eras da Cachoeira).

O autor cria palavras para descrever a leitura do mundo do ponto de vista de Herontino Henoc (o Leopold Bloom da história) numa erudição fantástica criando uma metralhadora enciclopédica que é uma narrativa dos nossos dias passados, presentes, vividos entre o sono e o sonho.

Que venham os leitores preguiçosos de sempre e me condenem (o livro exige muitos dicionários e muita pesquisa para ser lido) mas "O relojoeirante calibra ponteiros nas paragens" é antecipadamente um clássico do nosso cânone.

A geometria dos dias

Marcus Moura Tavares.

Editora Radiadora.

O livro de crônicas do cineasta e Professor da Escola de Cuba e da Casa Amarela Marcus Moura é um caleidoscópio de narrativas de um homem de imagens que domina com perfeição a linguagem escrita. Marcus Moura é um leitor atento e refinado da literatura Peruana, Argentina, Cubana, Espanhola e Mexicana. Assim, a partir das suas narrativas é possível perceber que o que ele estudou e como conviveu com grandes escritores e roteiristas (García Márquez,Vargas Llosa, Orlando Sena, são alguns exemplos).

Texto bom, gostoso de ler e que resulta numa deliciosa visão do mundo visto de um ponto de observação que é a américa hispânica e portuguesa.

Oração para desaparecer

Socorro Acioli.

Companhia das Letras.

No seu segundo livro, Socorro Acioli manteve a pegada de criar um plot a partir de uma percepção do realismo mágico. O realismo fantástico utilizado pelo seu mestre Gabriel Garcia Marquez, alterna fatos históricos com situações fantásticas. O Realismo Mágico de Márquez foi inspirado pela natureza da América Latina, suas lendas e mitos que circulam desde os tempos coloniais. Quando Socorro escrevia o livro me ofereceu alguns capítulos já escritos, confesso que temi pelo uso novamente do recurso.

Em "Oração para desaparecer", uma jovem acorda sem memória após ser desenterrada em um jardim de uma aldeia em Portugal. A Partir daí a mulher empreender uma busca vital para descobrir a verdade sobre seu desaparecimento. Socorro utilizou a técnica com maestria e genialidade,Com esse novo livro, ela vai montando um caminho de restabelecimento de uma ordem secreta como se fosse uma recolonização da vida dos seus personagens. Os físicos chamam esses processo de "ligação" que implica a união de itens improváveis em grupos e identidades redefinidas por meio de novos limites de uma cartografia. O livro vai vender muito e traça um caminho de sucesso de público e de crítica para Socorro à la J.K. Rowling. Enfim, meus temores eram infundados. Ela sabe o que faz e o livro merece o sucesso que já está fazendo.

 

Foto do Paulo Linhares

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