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Janet e as imagens fixas da nossa vida
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Janet e as imagens fixas da nossa vida

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Foto: Divulgação/Cia das Letras "Imagens Imóveis: Sobre fotografia e memória", de Janet Malcolm

Janet Malcolm era uma menina judia, nascida em Praga, em 1934, que mudou a história do jornalismo mundial desconfiando do jornalismo e fazendo exatamente o que criticava, jornalismo, perfis, investigações e ensaios.

Ela dizia que "jornalismo era uma atividade moralmente indefensável". Sim, também passei por uma longa fase de descrença no jornalismo. Claro que eu gostava no novo jornalismo, Gay Talese, Tom Wolfe e a ideia de escrever como se escreve ficção.

Mas houve um momento em que passei a achar tudo tão superficial, fake e desnecessário que parei de ler. Até que redescobri Janet Malcolm. Ela era basicamente uma pessoa que fazia do jornalismo um ofício de se escrever sobre como desconfiar da realidade.

O crítico Robert Boynton dizia "nunca coma diante de Janet Malcolm, nem mostre a ela seu apartamento ou corte tomates enquanto ela olha." E o seu maior interesse era analisar o jornalista e suas fontes.

Escreveu reportagens investigativas que se transformaram em livros clássicos de jornalismo.

Sua obra mais famosa, "O Jornalista e o Assassino", investiga a relação entre um autor de best-seller, Joe McGinniss, com Jeffrey MacDonald, um médico condenado por ter matado sua família.

Durante a investigação, o jornalista convenceu o assassino de que tinha certeza de sua inocência, e que o livro certamente provaria isso. MacDonald abriu a ele as portas de sua intimidade. Só que a obra escrita depois por McGinnis o apresentou como um assassino cruel.

Ela morreu em 2021, e a Cia de Letras está lançando um livro seu autobiográfico, escrito pouco antes de morrer vítima de um câncer,

Ou seja, ela passou a vida investigando as complexas relações entre o eu jornalístico e o entrevistado, e juntou finalmente as duas coisas em "Still Pictures: On Photography and Memory" (Imagens Imóveis,sobre fotografia e memória),

Em 2010, ela dizia ser tarde demais para "mudar de pele" e escrutinar, por escrito, a própria memória.

Mas Janet Malcolm usou fotos antigas da sua vida para tentar narrar sua história.

É um texto às vezes vacilante, cuidadoso e muito luminoso.

Vou publicar um pequeno enxerto do livro, em que ela aparece com quatro anos, na janela de uma trem com seus pais.Depois, faço um exercício lúdico usando a técnica de Janet, e escrevo um texto sobre uma foto da minha infância..

 

A menina no trem.

Uma foto em preto e branco,de nove por sete centímetros, mostra um homem, uma mulher e uma menininha olhando a janela de um trem. No verso da foto leem-se as palavras escritas à mão: "Partindo de Praga, julho de 1939".

O homem e a mulher sorriem, e a expressão no rosto da menina se manifesta de modo mais poderoso e sucinto pela palavra tcheca mrzuty do que qualquer palavra inglesa: cross, grumpy, surly, sulky, sullen, morose, peevish (variações de zangada, mal humorada, emburrada, birrenta). O caráter onomatopaico mrzuty manifesta o caráter de irritação que as palavras inglesas apenas indicam indiretamente.

O homem e a mulher são meu pai e minha mãe, aos 39 e 29 anos, e a criança sou eu com pouco menos de cinco. Não me lembro dessa viagem de trem. Olhando para a foto me pergunto onde estava minha irmã, Marie, com dois anos e meio. Talvez deitada no único assento da cabine.

O trem seguia rumo a Hamburgo, onde estava ancorado o transatlântico para o qual tínhamos comprado passagens, tendo como destino os Estados Unidos. Foi um dos últimos navios civis a partir da Europa para a América antes do início da guerra. Nós fomos dos poucos judeus que escaparam do destino dos outros por pura sorte, tal como uns poucos insetos aleatórios escapam do jato de inseticida. Os burocratas nazistas que nos concederam vistos em troca de propinas (segundo os relatos da família, compramos um cavalo de corrida para um homem da ss) decidiram—para arrancar mais dinheiro de nós—que viajaríamos na primeira classe do transatlântico.

 

As crianças na Praça.

É uma foto em preto e branco com meu irmão e eu.

Estamos em Parnaíba,PI. Meu pai tinha sido convidado a dirigir o maior colégio da cidade, São Luiz Gonzaga, pertencente à Diocese.

Na outra foto, bem desfocada, estou sentado em frente ao Colégio.

Meu pai tinha 33 anos.

Eu tinha pouco mais de sete anos.

Quando meu irmão André, que aparece na foto, morreu anos depois, aos 23 anos, num acidente de moto, no caminho do cemitério lembrei de uma cena em frente a essa praça em que eu estava acompanhado por uma babá. Eu estava muito triste, porque meu pai e minha mãe tinham ido trabalhar no colégio.

Depois, pensei que aquela grande sensação de abandono infantil, tinha sido uma lembrança que me veio à mente exatamente no dia mais triste da minha vida adulta.

Meu pai adorou essa fase parnaibana. Ele transformou o colégio num grande centro de ensino de português e dele saíram grandes professores, como Genuíno Sales, e até governadores como Mão Santa.

Dos nossos anos de Parnaíba não guardo quase nada na memória.Lembro apenas de um dia em que papai inventou de convidar uma trupe de circo para fazer uma grande tourada no colégio.

Os alunos, claro, torceram pelo touro, que quase sempre levava a melhor.

Lembro também de nossas idas à praia de Amarração, que guardei como a praia mais bela que apareceu aos meus olhos. Sempre achei que era uma dessas exageradas lembranças infantis que nos assombram como uma goiabada mais deliciosa da vida.Depois descobri que Amarração é realmente uma das praias mais bonitas do mundo.

Essa experiência em comandar grandes colégios, voltaria a acontecer com meu pai, e nossa família iria junto, quando ele foi proibido de dar aulas na UFC pela ditadura militar,e fomos para São Paulo onde ele dirigiu um colégio particular e fazia experiências piagetianas num bairro um pouco fora da cidade, onde só moram famílias muito ricas, a Granja Viana.

Morávamos no bairro de Vila Nova Conceição, perto do Ibirapuera,também em frente tinha uma praça, onde adolescentes nos reuníamos para ouvir música pop.

Era divertidíssimo.Curiosamente essa rua é hoje o metro quadrado mais caro de São Paulo.

Sempre que vejo as fotos das duas praças, a da minha infância e a da minha adolescência, lembro de um texto da Clarice Lispector, do livro "Perto do Coração Selvagem", que diz mais ou menos assim:

- O que é que se consegue quando se fica feliz? A sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana.

- Repita a pergunta?

Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.

- Pergunte de novo,Joana, eu é que não ouvi.

- Queria saber, depois de que se é feliz o que acontece? O que vem depois? Repetiu a menina com obstinação.

- Que ideia! Acho que não sei o que você quer dizer, que ideia! Faça a mesma pergunta com outras palavras…

- Ser feliz é para conseguir o que?

 

Foto do Paulo Linhares

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