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O Livro do Chico Buarque aos 80
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

O Livro do Chico Buarque aos 80

Roma vista a partir do olhar de um bambino brasileiro
Chico Buarque revisita sua infância na Europa no livro
Foto: Leo Aversa/Divulgação Chico Buarque revisita sua infância na Europa no livro "Bambino em Roma"

Chico Buarque completou 80 anos no dia 19 de julho. E lançou um livro - que a mídia está chamando de ficção - sobre sua infância em Roma intitulado "Bambino a Roma". Ficção ou memórias de infância? Vai saber o que ele lembrou e o que ele inventou.

O certo é que a obra tem como inspiração o período no qual a família de Chico se mudou para a Itália. Na época, o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda, pai de Chico, autor do clássico e hoje combatido "Raízes do Brasil", a primeira obra de orientação Weberiana no País, foi convidado para lecionar na Universidade de Roma, o que provocou a viagem que durou sete anos.

Dos sete anos que passou por lá, Chico recortou dois anos (1954 e 1955) para escrever suas lembranças. O que me soou meio estranho, já que ele, com apenas quatro anos, cortava Roma inteira de bicicleta, tinha grandes ereções em homenagem à professora de italiano do pai e lia jornais nas bancas e comentava em casa a morte de Getúlio, no Brasil.

Quando eu tinha 15 anos, Chico já disputava com Caetano no festival da TV Record, e nós nos dividíamos entre defensores do baiano e o grupo de ardorosos fãs do carioca (geralmente as meninas).

Augusto Pontes não gostava da empáfia do Chico e criou a máxima: "Ele acredita que é filho da História do Brasil (seu pai Sérgio Buarque), sobrinho da Língua Portuguesa (o tio Aurélio) e pensa que é a música popular brasileira".

Talvez dessa época eu tenha herdado uma certa má vontade com a obra literária do Chico, já que a musical e poética é quase inatacável.

O certo é que fui ler "Bambino a Roma" com um pé atrás. E, surpresa, adorei.

Começa com o professor de inglês pegando na bunda dele. Chico passa o livro sendo esnobado pela sua musa, que ele descobre depois que não era chegada a um parceiro masculino, e termina com ele voltando a Roma, nos dias de hoje, reencontrando o melhor amigo da infância romana, Amadeo, (não fica claro se era ele mesmo) dormindo na sarjeta.

Ou seja, a sinopse não tem nada de mais. Mas é muito interessante olhar Roma, cidade que adoro, mas demorei para entender, sob os olhos infantis de Chico.

O filósofo Walter Benjamin escreveu "Infância em Berlim" por volta de 1900, livro dedicado ao filho Stefan.

Benjamin tentou recuperar o mundo cultural da época e também evocou o modo de ver das crianças, suas sensibilidades e seus valores, numa espécie de relato de criança que assiste à cultura e à história de seu tempo à margem do mundo social adulto.

O que "Bambino a Roma" tem de interessante é que tece um quadro social mais amplo, sem abrir mão de sua singularidade de um filho de intelectual brasileiro estudando em escolas chiques. O livro traz à tona o perfil cultural de uma classe burguesa nas suas relações com outros personagens de outras classes sociais (seu melhor amigo Amadeo é filho do quitandeiro e o outro amigo, Carlo, é filho da mais famosa atriz da Itália) e descreve não apenas lembranças pessoais, mas a vibração de uma memória que sai do individual e vai para o coletivo. Não fala dele apenas. Fala de um nós em relação com os outros. Rememora a criança que foi articulada a outros personagens e a cidade.

Voltando a Benjamin, ele diz que a modernidade é, de um lado, o enfraquecimento da "Erfahrung", a experiência, no mundo capitalista moderno, em detrimento de um outro conceito, a "Erlebnis", a experiência vivida, característica de um indivíduo solitário na cidade da multidão.

Chico mostra essa passagem da sua infância tentando entender o mundo adulto exatamente como a passagem dos conceitos benjaminianos de experiência para a experiência vivida.

É um belo livro.

Simples e comovente.

Um pequeno clássico.

 

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