
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Uma pesquisa da JLeiva Cultura & Esporte foi anunciada na última semana mostrando os hábitos culturais nas capitais do Brasil. O estudo contou com 19.500 entrevistas em todas as capitais e Distrito Federal. A cobertura de mídia mostra que sem instrumentos conceituais de análise não se enxerga nada. E foi o que aconteceu num encontro que a JLeiva realizou em Fortaleza. Nem os apresentadores tinham potência teórica para interpretar os dados, nem os convidados exigiram.
Vou analisar aqui os pontos do documento, especificamente em Fortaleza, e apresentar um diagnóstico com base nos conceitos necessários à análise, porque o que vemos merece reflexão.
Sei que os principais responsáveis pelas decisões de políticas públicas de cultura na Cidade não vão considerar bulhufas as conclusões. Mas artistas, universidades, governador e prefeito - antes de botar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilos - deveriam pensar nos investimentos feitos na Cidade e o que a pesquisa nos diz.
O campo cultural brasileiro é historicamente atravessado por desigualdades estruturais que se acentuam nas regiões fora do eixo Rio-São Paulo-Minas. Fortaleza representa um caso paradigmático de campo regional periférico em relação ao Sudeste dominante, onde coexistem efervescência criativa, precariedade material e baixa autonomia institucional.
Segundo Bourdieu, o capital cultural pode ser dividido em três formas: incorporado (saber e competências), objetivado (livros, instrumentos, obras) e institucionalizado (diplomas). O habitus, por sua vez, representa as disposições duráveis adquiridas socialmente, que orientam as práticas culturais. O campo cultural, entendido como um espaço autônomo de disputa simbólica, adquire contornos específicos nas regiões periféricas, onde se intensificam a escassez de recursos e a heteronomia frente aos campos político e econômico (Adorno, 1993; Bourdieu, 1996).
A noção de campo cultural regional periférico aqui utilizada está ligada a uma produção simbólica de alta densidade criativa, mas que opera em condições de escassez estrutural e com reduzido reconhecimento institucional. Nesse contexto, a arte é muitas vezes precária, politicamente heterônoma e formalmente marcada por uma configuração estética própria.
São seis os pontos que merecem uma reflexão.
1. Perfil sociocultural dos entrevistados:
Gênero: predomínio feminino (61%), o que pode indicar disposição das mulheres para responder pesquisas ou maior vínculo com atividades culturais mediadas por políticas públicas.
Renda: maioria com renda até 2 salários mínimos (34%), seguida por faixa de 2 a 5 salários (30%).
Escolaridade: 64% possuem ensino superior completo ou incompleto — indicador de capital cultural incorporado elevado (Bourdieu).
Raça/Cor: 60% se autodeclaram pretos ou pardos — sinal importante da pluralidade étnico-racial da experiência cultural urbana.
2. Práticas e Hábitos Culturais:
Atividades mais frequentes: ouvir música (88%), assistir filmes/séries (86%) e usar redes sociais para cultura (69%).
Menor frequência: museus (35%), apresentações de dança (24%) ou óperas/teatro lírico (6%).
Interpretação: há predominância de práticas culturais domésticas, mediadas pela internet, com menor frequência de práticas de "alta cultura" (segundo a hierarquia tradicional). Isso sugere uma reconfiguração do habitus cultural popular urbano, especialmente nas periferias.
3. Acesso a equipamentos e políticas públicas:
Equipamentos mais citados: Centro Dragão do Mar de Cultura e Arte, Theatro José de Alencar e Cucas.
Críticas: falta de descentralização, dificuldade de transporte, insegurança e ausência de manutenção.
Leitura: o Dragão é disparadamente o centro por excelência de atividades culturais da cidade. O Dragão é, aliás, o equipamento que tem a melhor imagem de todo o Brasil - mesmo confrontado seus números com Museu da Língua Portuguesa e Museu de Arte de São Paulo, localizados em São Paulo, ou Centro Cultural Banco do Brasil, localizado no Rio de Janeiro.
Que o Dragão do Mar esteja ilhado, em obras que nunca terminam e tenham lhe tirado até as linhas de ônibus é preocupante.
4. Percepções sobre cultura e cidade:
A maioria dos entrevistados acredita que "Fortaleza valoriza pouco sua cultura local" (63%). Há demandas por apoio aos artistas, cultura nas escolas e fortalecimento das políticas públicas.
Essas percepções demonstram uma concepção ampliada de cultura na população, crítica ao modelo atual elitista. A cidade é percebida como produtora cultural, mas marcada por desigualdades no reconhecimento e acesso.
5. Interpretação com conceitos de sociologia e antropologia da cultura:
Capital cultural incorporado: os entrevistados demonstram familiaridade com múltiplas práticas culturais, especialmente digitais e musicais, indicando uma incorporação de saberes que nem sempre são legitimados no campo dominante.
Capital cultural institucionalizado (diplomas): elevada escolarização dos entrevistados que têm hábitos culturais, porém isso não garante acesso simétrico a bens culturais.
Habitus periférico urbano: a estrutura de práticas indica uma adaptação às condições de escassez, com criatividade e reconfiguração das formas de fruição cultural — em especial nas camadas populares.
6. Implicações dos resultados para o campo cultural de Fortaleza:
A pesquisa mostra um "campo cultural tensionado", com presença de instituições públicas e privadas fortes, mas com uma base social que acessa esses recursos de forma desigual.
Escassez material densidade simbólica = produção de um campo regional periférico dinâmico, mas pouco autonomizado em relação ao campo político e ao mercado.
Aponta para a urgência de políticas de mediação e descentralização, especialmente no fortalecimento de projetos locais autônomos.
Conclusão: a pesquisa revela um campo cultural "vibrante, desigual e em disputa". A análise à luz dos conceitos ajuda a entender como os capitais culturais são distribuídos concentradamente e como a democratização do ensino superior criou um público de baixa renda (menos de 5 salários mínimos de renda familiar), predominantemente feminino, pardo e negro.
O cenário impõe desafios a gestores culturais, artistas e pesquisadores que queiram pensar uma cidade mais democrática, inclusiva e criativa.
Os dados mostram que as práticas culturais mais comuns são: ouvir música (88%); assistir filmes/séries (86%); e consumir cultura pelas redes sociais (69%). Essas práticas exigem baixo custo de entrada e ocorrem, majoritariamente, no espaço privado. Já atividades como ir ao teatro (22%) ou a museus (35%) têm frequência bem menor.
Essa dicotomia revela um deslocamento do consumo cultural para o ambiente digital, mediado por plataformas e redes sociais. O campo cultural periférico, portanto, não se organiza mais apenas em torno do "equipamento público", mas em torno de "práticas descentralizadas, móveis, híbridas".
Percepções da cultura e da cidade: uma crítica vinda de dentro.
A maioria acredita que "Fortaleza valoriza pouco sua própria cultura". A demanda por apoio a artistas locais, inclusão cultural nas escolas e manutenção dos equipamentos existentes aparece com força.
Esse dado revela uma percepção crítica, madura, e confirma o que Bourdieu identificaria como "um campo cultural em disputa por legitimidade". O reconhecimento simbólico, mais do que o acesso físico, é a chave da desigualdade cultural em Fortaleza.
Diagnóstico: cultura como potência cercada pela escassez.
A pesquisa confirma o que os artistas e gestores culturais da Cidade já sabem intuitivamente: "Há uma cultura potente, vibrante e plural em Fortaleza, mas cercada por desigualdades estruturais terríveis". Isso cria um campo cultural:
Altamente criativo, mas pouco autonomizado em relação ao político e ao econômico;
Com capital simbólico denso, mas disperso;
Com forte produção periférica, mas reconhecimento centralizado.
A cidade precisa de "políticas públicas que escutem as margens", reconheçam a legitimidade da cultura popular urbana e "invistam em mediação e descentralização".
Para quem quiser se aprofundar nos conceitos vai uma pequena bibliografia
ADORNO, Theodor. Teoria Estética. São Paulo: Editora 34, 2004.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
Observatório de Cultura das Capitais. Capitais — Fortaleza. 2025. Disponível em culturanascapitais.com.br
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