
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Na política do Ceará, os irmãos Ciro Ferreira Gomes e Cid Ferreira Gomes seguem exercendo um papel central — não apenas pelo capital político acumulado em décadas de atuação pública, mas também pelo modo peculiar com que se posicionam no tabuleiro. Ambos são reconhecidamente inteligentes, preparados e com sólida trajetória administrativa. No entanto, suas histórias são atravessadas por uma tentação persistente: a de furar a fila das mediações políticas, atropelar instituições e se apresentar como intérpretes exclusivos da vontade popular — comportamento que remete ao "lacerdismo" do século XX, legado direto de seu pai, José Euclides Ferreira Gomes, admirador confesso de Carlos Lacerda.
José Euclides, ao contrário da maior parte das análises da imprensa sudestina — muitas vezes carregadas de preconceito — não apresentava traços que comumente lhe são atribuídos: nem liderança da aristocracia rural, nem adesão ao padrão clientelista. Formado em Direito e Antropologia pela Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, entrou na política graças a um impasse entre as duas famílias que dominavam a política de Sobral. Estudou e viveu no Rio de Janeiro, sofrendo influência direta de Lacerda.
Esse traço lacerdista, que mistura personalismo, moralismo seletivo e certo desprezo pelas transformações de base popular, encontra eco tanto na figura brilhante de Ciro quanto na atuação mais moderada, ideologicamente, de Cid — hoje mais contido, mas não menos influenciado por essa tradição. Para compreendê-los, é possível mobilizar os conceitos desenvolvidos por Christian Lynch em "Populismo Político Reacionário" (2022) e por Paulo Henrique Cassimiro e Angelina Figueiredo no livro "Visões da Independência" (2022), que examinam como elites ilustradas no Brasil — mesmo modernas e sofisticadas — podem cair em armadilhas políticas esclarecidas.
Carlos Lacerda foi o maior expoente daquilo que Lynch classifica como "populismo político reacionário": uma forma de populismo que, ao contrário do populismo inclusivo (como o varguismo), se ancora em elites ilustradas que se veem moralmente superiores ao povo e politicamente acima das instituições. Lacerda representava a fusão entre modernização técnica e guerra moral, racionalidade administrativa e intransigência autoritária. Seu discurso de combate à corrupção, à conciliação política e ao "atraso" dos adversários ressoa ainda hoje nas falas e posturas de Ciro Gomes.
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Mesmo quando se apresenta como reformista nacional-desenvolvimentista, Ciro adota um estilo discursivo que se aproxima do lacerdismo: personalista, vertical, antissistêmico. E sua maior força — essa visão disruptiva — é também seu maior problema. Seu projeto de "refundação da República" passa ao largo de qualquer pacto institucional ou construção coletiva duradoura. Ao se declarar o único "preparado" para liderar o Brasil, flerta com a visão tecnocrática de uma elite salvacionista, típica do populismo reacionário, que Lynch descreve como uma forma de "protesto elitista contra o próprio sistema político".
Cid é mais silencioso e pragmático, mas também expressa resquícios desse espírito. Foi responsável pela grande mudança da educação no Ceará a partir das ideias de meu pai, Edgar Linhares. Enquanto Ciro teve a pior Secretária de Educação da história contemporânea do Ceará. Mas a saída de Cid do PDT, após a derrota eleitoral de Ciro, não foi apenas estratégica: foi um gesto simbólico de quem despreza o papel das instâncias partidárias mais tradicionais, se serve delas, e aponta para a crença de que o que importa mesmo é que o poder deve estar nas mãos de "quem tem preparo" — ou seja, de uma elite intelectual e técnica esclarecida, baseada na ação de gestores competentes.
Ambos os irmãos reproduzem, em estilos distintos, essa tentação de substituir a lentidão dos mecanismos da política representativa por formas mais verticais de mando. Ciro, com sua verve inflamável, denuncia alianças como "conchavos" e partidos como "máquinas de aluguel", mas pouco se dispõe a disputar hegemonia dentro dessas instâncias, sem demonstrar, na prática, que sabe fazer e não apenas falar. O modo como abandonou a Prefeitura, depois o Governo do Estado, e seu desprezo por mandatos como deputado federal, senador e até governador, revela sua preferência por construir autoridade em torno da figura do "intelectual político" — como Lacerda fazia —, convencido de que o diagnóstico correto da realidade é suficiente para legitimá-lo como líder capaz de transformar o País. De certo modo, um padrão brizolista, embora Brizola tivesse recaídas mais consensuais (como governador do Rio, candidato derrotado várias vezes à Presidência, sem abandonar o Executivo nem a ação política direta).
Já Cid, ao tentar manter o controle de prefeituras, secretarias e bases eleitorais a partir de sua rede pessoal, segue os impulsos democráticos rotineiros da vida partidária. Ainda que sua atuação recente — mesmo integrada ao governo do Ceará — revele uma operação como "poder paralelo", ou uma "força moderadora" informal, que busca ser um antídoto ao marasmo do sistema político local.
Essa atitude reforça a instabilidade do campo político cearense e ameaça a hegemonia petista atual, que por sua vez repete o clássico modelo utilizado por Virgílio Távora: buscar uma aliança completa pelo Ceará, distribuindo parcelas do poder para manter a estabilidade.
Em suma, os irmãos Gomes, herdeiros de uma tradição política marcada pelo esforço de modernização do Ceará, também carregam as contradições de um projeto que representa, hoje, a única possibilidade de enfrentamento à hegemonia estabilizadora do projeto camilista. A extrema-direita bolsonarista — para desgosto do próprio Bolsonaro — já aceitou as ordens de Ciro.
Ciro, mais impulsivo e verbal, e Cid, mais pragmático e subterrâneo, compartilham a tentação de desorganizar o continuísmo iniciado por Tasso "por dentro" — seja deslegitimando os partidos de apoio ao PT e suas alianças, seja tentando disputar o jogo com um discurso anti sistema em aliança com a extrema-direita.
A ruptura entre os dois irmãos, longe de significar uma disputa entre caminhos opostos, revela antes a continuidade de um mesmo modelo de poder: o do político modernizador que se recusa a ser pacientemente inovador pela via demorada da democracia popular, mas é, ao mesmo tempo — e ironicamente — o único que aparenta ter condições de enfrentar a acomodação petista e a normalização da desigualdade histórica.
No Ceará, como no Brasil, o futuro da política talvez dependa da capacidade de superar a cilada representada por esse duplo legado — e de reconstruir formas de disputa em que inteligência, preparo e compromisso com a democracia não sejam usados nem para contornar o jogo político democrático, nem para justificar uma hegemonia acomodada à velha ordem.
A loucura impulsiva e personalista da oposição mesclada à extrema-direita neofascista, que ganharia força com uma possível pirueta de Cid mudando de lado? Ou a acomodação do PT, hoje descaracterizado de sua vontade de transformação social e sem a fibra de Luizianne Lins?
Enfim, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
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