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A guerra dos streaming agita a cultura brasileira
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

A guerra dos streaming agita a cultura brasileira

A ascensão do streaming e o declínio da televisão aberta no Brasil abrem uma guerra cultural. O Ceará precisa participar
Tipo Opinião
Foto: reprodução / Netflix "DNA do Crime", série brasileira da Netflix que mistura ficção e crime real na fronteira, tem temporadas lançadas em 2023 e 2025

O streaming, como nova forma dominante de consumo audiovisual em confronto com o modelo tradicional da televisão aberta, provocou uma guerra cultural no Brasil. A Rede Globo, depois de três experiências fracas do Globoplay, lançou esta semana, com alvoroço, "Guerreiros ao Sol", um produto com características de minissérie e novela: 45 episódios de 50 minutos, sua primeira experiência híbrida de novela/streaming. Vamos analisar os dados comparativos sobre o desempenho do Globoplay diante das gigantes internacionais, discutir as condições da produção audiovisual no Brasil (no Nordeste) e na Argentina, contar o porquê a briga política no Congresso pela regulação e taxação — que tem um cearense (André Figueiredo) bem no meio da luta — e procurar entender o que o Ceará deveria fazer e não fez até agora.

O regime da televisão aberta

Durante o século XX, a televisão aberta constituiu-se como o principal meio de formação de audiências e subjetividades em larga escala. No Brasil, o modelo se consolidou a partir da década de 1970, com a hegemonia da Rede Globo, que estruturou uma programação padronizada, sustentada por concessões públicas, financiamento publicitário e grade fixa. A TV aberta cumpria, assim, uma função de "centralidade narrativa", ao articular jornais, novelas, programas de auditório e transmissões esportivas como dispositivos de consagração simbólica.

A ruptura tecnológica e o nascimento do streaming

A transição para o streaming marcou uma transformação no modo de consumo audiovisual. A Netflix, fundada em 1997 como locadora, iniciou sua plataforma de streaming em 2007, nos Estados Unidos. O grande ponto de inflexão ocorreu em 2013 com a série "House of Cards", primeira produção original da plataforma, sinalizando o poder da distribuição sob demanda aliada a algoritmos de recomendação e a uma relação personalizada com o usuário.

As plataformas e o capital das telecomunicações

As principais plataformas de streaming estão integradas a conglomerados de comunicação:

  • Netflix: independente, em sua origem, financiada por capital de risco e créditos bilionários.
  • Prime Video: parte do ecossistema da Amazon, cujo objetivo é fidelizar clientes ao serviço Prime.
  • Disney : integra o império Disney (cinema, TV a cabo, parques).
  • Apple TV: reforça a integração entre software, conteúdo e dispositivos da Apple.
  • HBO Max: pertence à Warner Bros. Discovery, com ligação às operadoras de cabo.

O streaming é parte de uma nova etapa do capitalismo de plataforma (Zuboff), em que dados, preferências e comportamentos são monetizados.

A chegada das plataformas ao Brasil

A Netflix chegou ao Brasil em 2011, com uma estratégia de massificação baseada na dublagem de todo o acervo e, posteriormente, em produções originais locais. Desde então, Amazon, Disney, Star e outras seguiram o mesmo movimento.

O Globoplay e a resposta nacional

Criado em 2015, o Globoplay é a principal plataforma nacional de streaming. Apoia-se no vasto acervo da Globo e tem investido em produções exclusivas, integração com canais pagos e tecnologia de recomendação.

O tamanho de cada uma no Brasil. Dados recentes:

  • Netflix Brasil: cerca de 17 milhões de assinantes;
  • Prime Video: entre 12 e 15 milhões de assinantes;
  • Globoplay**: 6 milhões de assinantes

Apesar de sua relevância, o Globoplay depende da capilaridade da TV aberta para atrair usuários. E, se pensarmos em capacidade de investimento, a plataforma não significa nada em relação aos gigantes mundiais, turbinados por grandes investidores americanos.

Produção nacional e dos vizinhos: Brasil e Argentina em disputa

O Brasil conta com vantagens, como infraestrutura, volume de produção, diversidade de gêneros e uma história de regulação e apoio à produção independente via Agência Nacional do Cinema (Ancine). Entretanto, enfrenta desafios, como a baixa internacionalização, a concentração sudestina (RJ-SP) e orçamentos modestos.

Nos últimos anos, o cinema pernambucano passou a desempenhar papel de destaque na renovação estética e temática do audiovisual brasileiro, com impacto direto no ecossistema do streaming. Essa cena regional impulsionou a valorização de linguagens mais autorais e políticas no streaming nacional.

Além disso, a força do Recife como polo criativo tem contribuído para a formação de novos talentos em direção, roteiro e atuação, que passaram a integrar elencos e equipes técnicas de produção em plataformas como Netflix, Prime Video e Globoplay. Um exemplo simbólico dessa influência está na série "DNA do Crime" (Netflix, 2023/2025), dirigida por Heitor Dhalia (também pernambucano), que alia a linguagem cinematográfica sofisticada a uma narrativa policial popular, alcançando grande audiência e projeção internacional.

Esse movimento impulsiona a descentralização da produção brasileira, ampliando o repertório de temas, cenários e sotaques representados no streaming, e demonstrando que o fortalecimento de polos regionais é estratégico para a diversificação e internacionalização do audiovisual nacional.

A Argentina, por sua vez, desenvolveu um estilo autoral, com menor volume, mas maior projeção hispano-americana. Produtoras como Pol-ka, Underground e Canal Encuentro têm destaque. Séries como "El Internauta", "El Marginal" e "Puerta 7" ganharam visibilidade via Netflix.

O que o Ceará precisa fazer

O modelo de streaming não apenas transforma as formas de consumo, mas redefine as relações entre produção, circulação e consagração. O Ceará enfrenta o desafio de manter uma produção cultural nacional relevante num ecossistema global dominado por algoritmos, catálogos estrangeiros e conglomerados internacionais. A valorização de polos regionais, como o cinema pernambucano e cearense, e a diversificação de narrativas constituem caminhos promissores para ampliar a presença brasileira nesse cenário.

Fizemos uma opção estratégica que pode nos custar caro: concentramos toda nossa capacidade de investimento nas artes visuais, e não no audiovisual. Isso significa, em termos de economia da cultura, baixo aproveitamento de pessoal, criação de defasagens tecnológicas no audiovisual e baixa eficácia simbólica na formatação de nossos bens culturais. Em poucas palavras, optamos pelo século XIX em pleno século XXI.

Precisamos montar uma empresa cearense de audiovisual. Não precisamos nem de editais: o Ministério da Cultura (MinC) acaba de lançar um edital que pode nos destinar até R$ 50 milhões.

Devemos reunir Karim Aïnouz, Mauricio Macedo e sua equipe local — nosso grande estrategista e gênio do cinema —, Halder Gomes, cabeça pensante com brilho do humor audiovisual, Alan Deberton - que está abrindo uma nova via de musicais -, Luciana Vieira e nossos trabalhadores da indústria de cinema Wolney Oliveira, Rosemberg Cariry e Marcos Moura. É hora de retomar o projeto da Ceará Filme, para não correr o risco de perder o bonde da história. É preciso entrar em campo também para lutar pela regulamentação da lei do streaming.

Por que regular o streaming é urgente?

Sem regulamentação adequada, o setor arrisca se tornar um "território sem lei". As plataformas estrangeiras, que dominam o mercado, têm poucas obrigações com o Brasil. Isso significa menos investimentos em produções locais e uma dependência quase total de conteúdos importados.

No último Encontro Nacional de gestores de Cultura, realizado em João Pessoa, o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura lançou uma carta exigindo uma alíquota de 12% sobre o faturamento bruto das plataformas de streaming. Essa proposta é quase o dobro do percentual sugerido pelo MinC. É preciso lutar pela proposta dos estados.

Qual o impacto de uma taxa mais alta para nós, cearenses?

Com uma alíquota maior, o objetivo é garantir recursos para financiar o Fundo Setorial do Audiovisual. Esse fundo seria utilizado para apoiar produtores, incentivar a descentralização e a diversidade cultural e criar oportunidades.

Foto do Paulo Linhares

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