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Só sei que tá ficando assim
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Só sei que tá ficando assim

Mito, invenção e racismo na formação do que chamamos Nordeste
Obra de Ariano Suassuna, livro
Foto: Divulgação/Laura Campanella Obra de Ariano Suassuna, livro "O Auto da Compadecida" foi adaptado em dois filmes homônimos

Eu tinha acabado de assumir a Secretaria de Cultura do Estado. Era o governo Ciro Gomes, quando chegou um estranho pedido do Governo de São Paulo para que o Governo do Ceará devolvesse a bandeira de São Paulo conquistada na revolução de 1930. Realmente, logo localizei a bandeira. Estava no Museu do Ceará. Aleguei que a bandeira era parte da história do Ceará e neguei a devolução.

A questão da ideia de Nordeste atravessou sempre minha vida. Sofri o diabo em São Paulo, para onde me mudei com minha família, em plena ditadura militar, para evitar as perseguições políticas que meu pai experimentou aqui.

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Me lembro que na primeira aula no Colégio Ministro Costa Mendes, na Vila Nova Conceição, onde morava, resolvi ficar bem caladinho para que as hienas não descobrissem meu sotaque.

No final da aula, respondendo à chamada, bastou dizer:

- "Présente", assim, com a vogal aberta, para toda a turma cair na gargalhada e me chamar aos gritos de baiano.

Durante todo esse tempo, a academia estudou o Nordeste brasileiro e começou a se firmar a percepção de como uma entidade geográfica e cultural nada homogênea é, na realidade, uma construção histórica e política. Longe de ser uma categoria natural, o conceito de Nordeste foi elaborado, disputado e ressignificado ao longo do tempo, envolvendo interesses econômicos, projetos de poder e processos culturais. Vou analisar quatro momentos decisivos nesse processo, a partir de quatro autores que marcaram o debate: Iná Elias de Castro, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Jessé Souza e Octavio Santiago.

O livro "O Mito da Necessidade", da minha amiga de temporadas parisienses, Iná Elias de Castro (Bertrand Brasil) publicado nos anos 1990, apresenta uma análise geopolítica que desmonta a ideia de que o Nordeste é uma unidade natural, geográfica e histórica.

Para Castro, o Nordeste foi uma invenção política das elites regionais, especialmente durante a década de 1950, quando se intensificaram as disputas por recursos federais. O argumento central é que as lideranças locais, em articulação com o governo central, criaram a ideia de um "Nordeste carente e necessitado", visando garantir políticas compensatórias. A criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) é apontada como um marco desse processo.

O conceito de "região-problema", segundo Castro, foi uma estratégia de legitimação de demandas políticas, mas que teve como efeito colateral a cristalização de estigmas que pesam ainda hoje sobre os habitantes da região.

Avançando além da análise político-institucional, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em seu livro "A Invenção do Nordeste" (Cortez, 2001), amplia o debate para o campo cultural e simbólico. Segundo o autor, o Nordeste não foi apenas uma invenção política, mas um conjunto de práticas e discursos institucionais, literários, midiáticos e artísticos.

Muniz de Albuquerque demonstra como, ao longo do século XX, diversas narrativas contribuíram para fixar uma imagem estereotipada do Nordeste: a terra da seca, da pobreza, da resistência e da religiosidade popular. Obras como o livro "Os Sertões", de Euclides da Cunha, e as músicas de Luiz Gonzaga tiveram papel central na construção desse imaginário.

O mérito de Durval Muniz é demonstrar que a invenção do Nordeste também foi internalizada pelos próprios nordestinos, que passaram a se reconhecer - e muitas vezes a se orgulhar - dessa identidade construída.

O conceito de identidade nordestina nasce, então, como um movimento de afirmação, mas carregando as marcas de sua origem histórica estigmatizada, sob o signo da escassez.

Em um terceiro momento, a discussão sobre o Nordeste ganha novos contornos com o livro "Pobre de Direita", de Jessé Souza.

Partindo de uma perspectiva sociológica, Jessé analisa como o preconceito regional é uma expressão do preconceito de classe, historicamente forjado pelas elites econômicas e intelectuais do Sudeste.

Souza argumenta que o Nordeste foi historicamente definido como o "outro interno" da nação: um espaço de atraso, ignorância e clientelismo. Essa imagem, cultivada pelas classes médias e elites sudestinas, serve para justificar as desigualdades regionais e reforçar a hegemonia político-econômica do eixo Rio-São Paulo.

O autor também evidencia como, nas últimas eleições presidenciais (2018 e 2022), esse preconceito se tornou explícito nas redes sociais, nas campanhas eleitorais e no discurso de parte da opinião pública. O Nordeste passou a ser acusado de "votar errado", sendo responsabilizado pelos resultados que contrariaram os interesses da elite econômica.

Mais recentemente saiu o livro "Só Sei Que Foi Assim, Narrativas Nordestinas no Brasil Contemporâneo" (Corrupio, 2024), de Octavio Santiago, que oferece um olhar multifacetado sobre a questão nordestina no Brasil contemporâneo. Santiago adota uma abordagem polifônica, combinando relatos, entrevistas e análises culturais para mostrar as transformações nas formas de expressão das diversas identidades nordestinas.

O autor destaca o crescimento de movimentos de orgulho nordestino, alimentados por artistas, influenciadores digitais, coletivos culturais e intelectuais. Ao mesmo tempo, evidencia que o preconceito regional persiste, mas encontra hoje uma resposta mais rápida e articulada das populações atingidas.

Entre os exemplos analisados, Santiago estuda o impacto das redes sociais na desconstrução de estereótipos, a emergência de artistas como João Gomes, Juliette, Baco Exu do Blues e Luedji Luna, que ressignificam a imagem do Nordeste, as campanhas de comunicação contra a xenofobia nas redes, o fortalecimento político das bancadas nordestinas no Congresso Nacional.

A partir desse percurso, é possível perceber uma mudança, num processo onde as transformações econômicas, sociais, políticas e culturais acabam por nuançar o debate que vai da denúncia da manipulação política (Iná Elias de Castro) a compreensão da construção simbólica (Durval Muniz), passando pela análise do preconceito estrutural (Jessé Souza) até chegar às novas formas de afirmação identitária (Octávio Santiago).

A atualidade da discussão mostra que o Nordeste, de hoje, é, simultaneamente, alvo de estigmatização e protagonista de novas narrativas. O avanço das políticas de inclusão social, a ascensão de artistas e intelectuais nordestinos e o fortalecimento das universidades públicas da região também contribuíram para um novo ciclo de afirmação identitária.

"Só sei que foi assim" é uma adaptação de sua tese de doutorado defendida na Universidade do Minho, em Portugal.

O autor inicia com um relato pessoal ocorrido em Portugal, onde uma brasileira expressa surpresa ao descobrir que ele, sendo nordestino, conseguia operar uma máquina de bilhetes. Esse episódio, que vivi exatamente igual em Paris com brasileiros, mostra como estereótipos sobre nordestinos estão enraizados, mesmo entre compatriotas.

Em cinco capítulos, Octávio mostra a construção histórica do preconceito desde a saída da capital de Salvador para o Rio, a marginalização econômica do Nordeste e a construção da representação do Nordeste como símbolo de atraso até os clichês de novela, os signos estéticos associados à região.

No final, o autor atualiza as questões políticas, analisando principalmente a eleição de 2022.

O título do livro, retirado de uma frase do personagem Chicó, de Ariano Suassuna, em "Auto da Compadecida", simboliza a naturalização desses preconceitos. O livro não tem o rigor conceitual e acadêmico dos livros de Iná, Durval, Jessé, mas faz uma boa atualização, quase na forma de ensaio, dos recentes conflitos políticos e culturais.

Já era tempo de percebermos que de fato algo mudou. E se o Nordeste foi uma construção das elites, hoje com as mudanças políticas do Brasil, a região tem força cultural, potência participativa da população e é politicamente um povo que sustenta quase majoritariamente o que o país tem de mais progressista no campo político e cultural.

Já é muita coisa mais do que uma simples marca da elite oligárquica.

 

Foto do Paulo Linhares

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