Logo O POVO+
Capistrano de Abreu: o início, o fim e o meio das interpretações do Brasil
Foto de Paulo Linhares
clique para exibir bio do colunista

Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Capistrano de Abreu: o início, o fim e o meio das interpretações do Brasil

Pelas margens, ele inventou a melhor teoria da cultura brasileira
Tipo Opinião
Historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927)  (Foto: Domínio público)
Foto: Domínio público Historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927)

Na minha adolescência, aos 12 anos ou 13 anos, ia a Maranguape farrear. Meus amigos, Jorge Cartaxo e Arruda Júnior, tinham uma avó que era descendente de Capistrano de Abreu e tomávamos banho no açude do Columinjuba. Foi o meu primeiro contato com o pensador que iria me inspirar por toda a vida. As pessoas do povo contavam mil pequenas histórias de Capistrano e seu pai no Columinjuba.

Passados muitos anos, me encontro um dia com o reitor Custódio Almeida e pensamos em voz alta projetos para o Colégio de Estudos Avançados (presidido pelo genial Tarcísio Pequeno). Quase instantaneamente, como num jogo de truco, dizemos Capistrano de Abreu para nomear a primeira cátedra.

Uma semana depois, o grande mestre Diatahy Bezerra de Menezes me falou do seu livro "Capistrano de Abreu. Brasil redescoberto".

Não vou aqui resenhar o livro. Só digo: leiam que é a porta de entrada mais segura para entender o porquê de Capistrano ser o primeiro e mais fecundo intérprete do Brasil - e todos os que vieram depois nadaram nos seus açudes. Sem contar que tem um prefácio arguto e inteligente que define Diatahy com muito humor de Fernando Costa. A seguir faço um pequeno exercício de imaginação sociológica para mostrar como o Capistrano inspirou nossos maiores intérpretes.

Capistrano de Abreu (1853-1927) foi muito mais do que um grande historiador. Ele foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a se preocupar em compreender a formação do Brasil a partir das suas bases históricas, geográficas e culturais. Ao estudar os caminhos de povoamento, a lógica da colonização e os processos de ocupação do território, Capistrano elaborou uma interpretação fundadora do nosso País. Sua obra fornece uma matriz que seria posteriormente retomada e ampliada por diversos pensadores centrais da cultura brasileira.

Capistrano e Paulo Prado: crítica ao mito da colonização

Paulo Prado, em "Retrato do Brasil" (1928), analisou a formação nacional sob a ótica da sensualidade, da violência e da cobiça. Capistrano, embora menos ensaístico, já denunciava a mesma lógica de exploração e desorganização. Ambos rejeitam a imagem idealizada da colonização portuguesa. Capistrano, com base em documentos, desmonta o mito de uma colonização civilizatória, mostrando-a como processo fragmentado e excludente.

Capistrano e Sérgio Buarque: caminhos e raízes

Capistrano abriu o caminho para uma compreensão territorial da formação brasileira. Seu livro "Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil" antecipou o interesse de Sérgio Buarque pelo espaço e pela cultura do cotidiano. Se Capistrano via os itinerários coloniais como chave explicativa da história, Sérgio desenvolveu a análise dos valores sociais e da "cordialidade". Ambos colocaram o povo no centro da formação nacional, recusando visões heroicas e centralizadas.

Capistrano e Caio Prado Júnior: a estrutura colonial

Tanto Capistrano quanto Caio Prado Júnior reconhecem a colonização como um empreendimento voltado à exploração. Capistrano revela os limites institucionais da colonização lusa. Caio Prado, sob influência marxista, interpreta a formação econômica do Brasil como continuidade do passado colonial. Ambos propõem um olhar crítico sobre o Estado brasileiro e seu caráter excludente.

Capistrano e Darcy Ribeiro: etnogênese e o povo brasileiro

Darcy Ribeiro retoma a preocupação de Capistrano com os povos indígenas e com a formação do Brasil profundo. Capistrano estudou a estrutura dos aldeamentos e o papel dos padres na integração forçada. Darcy amplia isso ao pensar a etnogênese do povo brasileiro como amálgama cultural. Ambos valorizam a dimensão popular e marginal da história.

Capistrano e Caetano: interpretações de um país tropical

Caetano Veloso costuma ser definido como o maior intérprete da cultura brasileira depois da indústria cultural. Artista tropicalista, criador inquieto, ele propôs um Brasil complexo, contraditório, profundamente misturado e aberto ao mundo. Seus textos, canções e performances articulam modernidade e tradição, erudito e popular, sertão e metrópole. No entanto, muito antes de Caetano cantar "esse povo mestiço de tanto sofrer", Capistrano de Abreu já havia teorizado a formação da cultura brasileira com a decifração do Brasil e seu povo "capado e sangrado".

Capistrano não era músico nem artista popular. Era historiador, filólogo, crítico. Mas sua obra, contida e silenciosa, realiza aquilo que Caetano transformaria em arte popular: uma espécie de arqueologia da brasilidade, buscando nas margens e nos esquecidos os verdadeiros traços da cultura nacional. Nesse sentido, podemos dizer que Capistrano foi um "Caetano Veloso avant la lettre": um criador de visões fundadoras sobre o Brasil a partir das dobras da história.

Capistrano estudou o que Caetano cantaria: um Brasil de interseções, de hibridismos, de vozes impuras.

Outra afinidade notável entre Capistrano e Caetano está na valorização das margens. Capistrano foi um dos primeiros a considerar o sertão não como atraso, mas como território de formação histórica. Para ele, o Brasil se fez pelos caminhos que os documentos oficiais ignoram — os trilhos abertos por indígenas, vaqueiros, bandeirantes, escravos fugitivos. Capistrano ouve essas vozes ausentes nos documentos e tenta reconstruir sua história.

Caetano, por sua vez, também transforma as margens em centro. Desde Tropicália, sua estética é marcada por uma valorização do que é periférico, sujo, ambíguo, bastardo. Ele transforma o sertão em vanguarda, o popular em erudição, o precário em arte. Assim como Capistrano escava os silêncios da história, Caetano escuta os sons da rua e os leva para os palcos do mundo.

Em sua obra, Capistrano demonstra uma visão profunda do Brasil como projeto inacabado, em constante disputa, múltiplo. Em vez de oferecer uma síntese ideal, ele entrega fragmentos, capítulos, caminhos, revelando a complexidade da formação nacional. Seu Brasil é composto de contradições: entre litoral e interior, colonizadores e colonizados, oralidade e escritura, mito e documento.

Caetano, da mesma forma, canta um país em trânsito, em tensão, jamais fechado em si. Suas canções misturam inglês com tupi, baião com rock, candomblé com tecnopop. O Brasil de Caetano está sempre por vir — e essa é exatamente a noção que Capistrano sustenta no campo historiográfico: o Brasil como enigma, como obra aberta, como história plural.

Ambos recusam o Brasil como essência. Para Capistrano, o Brasil é processo. Para Caetano, o Brasil é invenção constante.

Capistrano foi, com a pena, o que Caetano viria a ser com a voz e o violão: um criador de sentidos, um desestabilizador de certezas, um intérprete das multiplicidades nacionais. Se Caetano é o grande cantor do Brasil complexo, Capistrano foi seu primeiro narrador silencioso. Ambos revelam que o Brasil não é aquilo que se diz dele nos palácios ou nos livros escolares, mas aquilo que emerge dos becos, das falas cruzadas, dos nomes indígenas, das práticas mestiças, dos caminhos antigos e das
canções inesperadas.

Capistrano foi Tropicália sem guitarra. E Caetano, seu herdeiro cultural, deu voz ao que Capistrano pressentiu nos documentos esquecidos de um Brasil profundo.

Enfim, sempre que alguém escrever sobre o Ceará, deveria ser obrigado a colocar um aposto "Terra de Capistrano de Abreu".

Foto do Paulo Linhares

Análises, opiniões e fatos sobre política, educação, cultura e mais. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?