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O Brasil acordou (de verdade)
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

O Brasil acordou (de verdade)

A bandeira da extrema-direita apareceu
Tipo Opinião
FORTALEZA,CE, BRASIL, 07.09.2021: Homem com bandeira do Brasil passeiam na Av. Beira-mar no feriado.  (Fotos: Fabio Lima/O POVO). (Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA FORTALEZA,CE, BRASIL, 07.09.2021: Homem com bandeira do Brasil passeiam na Av. Beira-mar no feriado. (Fotos: Fabio Lima/O POVO).

A febre bolsonarista que contaminou a extrema-direita sempre me impressionou. Nunca tive energia para fazer uma etnografia. Observava os grupos ali ao lado da 1Oª Região Militar. Tive um antigo parceiro, diretor de arte, um cara cordato que aderiu à religião e mudou completamente. Um dia, foi a uma manifestação bolsonarista na Praça Portugal, pegou Covid e morreu.

Há um tipo de febre que precede o colapso. Foi assim na Alemanha, quando o humilhante Tratado de Versalhes instalou uma névoa de ressentimento que se adensava nas conversas de café, nos jornais, nas praças. Foi assim na Itália, onde os despojos de uma guerra mal digerida se tornaram o alimento de um discurso que prometia glória imperial. E foi assim no Brasil, décadas mais tarde, quando um verde e amarelo febril tomou conta das ruas sob o pretexto de salvar o País - uma febre que só depois percebemos ser sintoma de algo mais profundo: o medo e a insegurança de um povo em busca de identidades comuns.

A nostalgia da grandeza: Alemanha e Itália nos escombros, o Brasil papagaio dos camisas verdes até o Brasil verde amarelo dos bolsonaristas.

Todos já assistimos cenas de Berlim em 1923. Coisas mais ou menos assim: um homem de terno puído compra pão com um carrinho de mão cheio de notas. A hiperinflação faz a economia derreter diante dos olhos. O dinheiro não valia mais nada. As conversas, nas esquinas, tinham sempre o mesmo tom: vergonha, raiva, saudade de um passado que talvez nunca tenha existido. Norbert Elias, em "Os Alemães", descreveu com precisão quase cirúrgica o efeito corrosivo dessa humilhação:

"O nacionalismo alemão tornou-se uma forma de compensação para um povo que se sentia continuamente ameaçado e humilhado. Era a tentativa de encontrar uma identidade segura em meio ao caos das transformações sociais e políticas".

Na Alemanha, em meio ao caos, Hitler aparece em uma cervejaria de Munique, gesticulando diante de uma multidão hipnotizada. Ele promete grandeza, ordem e vingança. E oferece um símbolo para costurar todos os pedaços soltos da nação: a bandeira com a suástica - vermelha, branca e preta - condensando a promessa de redenção.

Vimos imagens antigas e em filmes em Roma, 1922. Nas ruas empedradas, homens marcham com fardas pretas, queixos erguidos e punhos fechados. Há um ritmo quase "coreográfico" na forma como ocupam as praças, como erguem estandartes e entoam hinos. Mussolini, o Duce, construiu um teatro onde o fascismo é tanto política quanto performance.

Umberto Eco, em "O Fascismo Eterno", observou: "No fascismo, a bandeira não é apenas um símbolo; é uma cortina. Serve para encobrir o vazio ideológico com cores vibrantes e apelos emocionais".

Integralismo: nacionalismo periférico e tropical

Vi outro dia fotos do Rio de Janeiro, em 1937. Milhares de camisas verdes desfilavam pela Avenida Rio Branco, levantando bandeiras com a cruz flechada. A saudação "Anauê!" parecia "ecoar" pelas ruas. É uma cena que parece importada da Europa, mas com palmeiras ao fundo e o sol tropical queimando a pele dos militantes. Plínio Salgado e seus integralistas reproduziam o modelo fascista com adaptações locais. Camisas verdes, marchas coreografadas e discursos inflamados sobre o "Brasil profundo". Era um nacionalismo de segunda mão, uma adaptação tropical de uma ideologia importada.

Bolsonarismo: o fetiche verde-amarelo

Vimos todos pela TV as imagens de Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, 7 de setembro de 2021. Tratores, caminhões e jet-skis desfilavam com bandeiras brasileiras enormes. Malucos vestidos de verde e amarelo, com camisas da seleção, cantavam o hino nacional diante do Congresso. Nas redes sociais, imagens da bandeira tremulando em praias e avenidas se multiplicavam com legendas como "Brasil acima de tudo". Em Fortaleza, nas janelas dos apartamentos no Meireles, nos prédios mais chiques, tinha sempre muitas bandeiras na varanda.

Jessé Souza, em "A Elite do Atraso", escreveu com amargura: "A elite brasileira sempre odiou o Brasil real e se sente mais confortável como sócia menor do poder estrangeiro. O bolsonarismo é apenas a versão popular dessa auto-humilhação". E Paulo Arantes, em "O Novo Tempo do Mundo", completou: "O nacionalismo da direita brasileira não passa de um folclore útil para manter a dependência estrutural do país".

Por que o nacionalismo seduz tanto? Theodor Adorno, que fugiu da Alemanha nazista, tentou responder à questão em seu texto clássico "A Personalidade Autoritária": "O amor ao país frequentemente esconde um ódio ao mundo e a si mesmo. O nacionalista radical desloca seu medo e insegurança para uma entidade abstrata - a nação - e ao fazê-lo encontra uma ilusão de força".

A nação, nesse contexto, torna-se um espelho onde os indivíduos projetam suas fragilidades.

O totem e o ressentimento

Talvez o uso do verde e amarelo nunca tenha sido um símbolo de pertencimento, mas um totem erguido sobre a ausência. No Brasil de Bolsonaro, quando surge a onda, a bandeira não aparece como símbolo de uma vida comunitária vibrante, de uma rede de afetos partilhados e de confiança mútua entre cidadãos. Ela surge como o último abrigo de uma classe média destituída de laços sociais, uma elite que se vê condenada a viver em condomínios fechados, com carros blindados e redes sociais que conectam mentiras. Basta checar as pesquisas, a adesão a esse bolsonarismo raiz aumenta conforme a renda.

Em sociedades onde a qualidade da vida social é rarefeita - onde poucos sentam juntos à mesa e muitos vivem sob o peso da desigualdade e da desconfiança - o totem aparece como solução mágica: um pano colorido que promete união instantânea e identidade onde antes só havia fragmentação. A bandeira, nesse contexto, funciona como recipiente para projeções violentas: medos, invejas, rancores acumulados ao longo de gerações. Não é coincidência que as manifestações bolsonaristas tenham se transformado em rituais quase tribais, onde corpos vestidos de verde e amarelo se encontravam para gritar, cantar hinos e expulsar os "inimigos" imaginários. Ali, a bandeira cumpre a mesma função dos totens em comunidades arcaicas: ela concentra a angústia difusa e dá forma ao ressentimento coletivo.

Mas há uma diferença fundamental. Nos clãs que Durkheim estudou, o totem representava a fusão do indivíduo com o grupo, uma forma de sustentar a vida social. No Brasil contemporâneo, a bandeira como totem não sustenta nada. Ela é o simulacro de uma comunhão que nunca se realizou. Em vez de enraizar pertencimento, canaliza frustração. Em vez de fortalecer laços, incita a destruição dos poucos fios que ainda nos ligam.

Theodor Adorno já intuía que o nacionalismo exacerbado é menos amor à pátria do que ódio deslocado:

"O amor à nação frequentemente serve de válvula de escape para o ódio a tudo que é diferente - inclusive a si mesmo".

Na coreografia bolsonarista, é um lençol estendido sobre um cadáver: o cadáver da nossa vida social, do espaço comum, do nosso projeto de nação.

Com o ataque de Trump ao Brasil, a verdadeira bandeira deles apareceu. Era uma bandeira americana. A mesma que Bolsonaro bateu continência um dia. Pedir o fim do pix para que os brasileiros paguem "whatsapp pag" é transformar o país numa bodega de produtos americanos.

E quando a Atlas Intel perguntou quem representa melhor o Brasil, 61% dos brasileiros responderam: Lula.

É como cantava Elis: "Alô, Alô, marciano, aqui quem fala é da terra. Pra variar, estamos em guerra". Uma guerra comercial e geopolítica bem complexa.

 

Foto do Paulo Linhares

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