
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
O Brasil vive transformações profundas. A expansão das igrejas evangélicas, a ascensão da nova extrema-direita e a ocupação das periferias por facções criminais revelam um País em ebulição — mas não cabe em explicações fáceis. Compreender tais fenômenos exige mais que estatísticas: requer escuta, tradução e empatia. É nesse cenário que a etnografia ressurge como ferramenta essencial. Ela não oferece respostas prontas, mas ensina a fazer as perguntas certas.
A história brasileira foi construída sobre o apagamento: dos povos originários, das culturas africanas, das vozes periféricas. Retomar a etnografia como interpretação social é devolver o protagonismo a esses sujeitos silenciados. É reconhecer que o Brasil não é uma unidade coesa, mas uma constelação de mundos em disputa.
Hoje, uma contra-antropologia se ergue para interpretar o país real. Se nos anos 1930 nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior descreveram o Brasil que emergia naquele tempo, os anos 2020 pedem uma escuta mais humilde e atenta. Talvez, ao reconstruirmos nossa imaginação social pela etnografia, possamos reaprender a escutar: o grito dos rios poluídos, o silêncio das periferias, o lamento das matas queimadas. Perguntar não para confirmar certezas, mas para nos deixarmos afetar pelas respostas.
Essa é a lição maior dos novos intérpretes do Brasil. Uma antropologia que nos humaniza porque reconhece a humanidade em tudo e em todos. O futuro da imaginação social brasileira passa pela coragem de ouvir vozes como as de Eduardo Viveiros de Castro, Ailton Krenak, Lilia Schwarcz e Nego Bispo. Eles apontam caminhos que vêm das margens, dos povos originários, das vidas invisíveis. Reconstruir o Brasil passa por perguntar mais, escutar mais, julgar menos, e caminhar ao lado de quem já entendeu que a floresta pensa e que o Brasil é mais do que seus mitos.
Se quisermos imaginar outro Brasil, precisamos mudar as perguntas. E para mudar as perguntas, precisamos mudar quem escutamos. Não se trata apenas de dar voz às margens — trata-se de ouvi-las como centro legítimo de pensamento. A etnografia, mais do que método, é gesto de humildade. E talvez seja exatamente isso o que nos falta para reconstruir o país: humildade para aprender com quem, historicamente, foi ignorado.
Eduardo Viveiros de Castro e o perspectivismo ameríndio
Após décadas em que a sociologia foi hegemônica, a antropologia emerge como a lente mais fecunda para ler o Brasil. Entre seus protagonistas, Viveiros de Castro se destaca como um pensador que desestabiliza certezas. Seu perspectivismo ameríndio não é uma curiosidade exótica, mas um abalo sísmico na ontologia ocidental. Para os povos amazônicos, humanos, animais, plantas e espíritos são todos "gente", seres dotados de agência e ponto de vista. Cada espécie se vê como humana. A separação entre natureza e cultura, tão cara ao Ocidente, simplesmente não faz sentido.
De Eduardo Viveiros de Castro: "O que chamamos de natureza é, para eles, uma cultura vista de fora; o que chamamos de cultura é, para eles, uma natureza vista de dentro".
Ailton Krenak e o futuro ancestral
Krenak é a voz que ecoa de um Brasil profundo, onde rios são parentes e florestas, mestras. Primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras (ABL), une ativismo e sabedoria ancestral. Para ele, "adiar o fim do mundo" é mais que metáfora: é prática cotidiana. Vivemos em uma sociedade do descarte, que esvaziou o sentido da existência ao reduzir tudo à utilidade. Krenak propõe outra ética: existir com o mundo, não contra ele.
De Ailton Krenak: "Estamos adoecendo porque acreditamos que tudo o que não serve deve ser descartado".
Lilia Schwarcz: o racismo como tragédia nacional
Entre a história e a antropologia, Lilia Schwarcz construiu uma etnografia crítica da nação. Sua obra desvenda os mitos da identidade nacional, cordialidade, democracia racial, como disfarces para profundas hierarquias. Ao estudar Lima Barreto, revela como o escritor negro denunciou um Brasil que exclui, criminaliza e marginaliza. Barreto foi cronista e vítima de um país fundado sob o racismo estrutural.
De Lima Barreto: "O Brasil não tem povo, tem público".
Nego Bispo: o quilombo como filosofia
Quilombola do Piauí, Nego Bispo propõe uma crítica radical ao monopólio do pensamento ocidental. Poeta, agricultor e filósofo, ele reivindica o direito de pensar a partir do chão. Para ele, o território é mais que geografia: é memória, cultura, autonomia epistêmica. "A nossa luta não é apenas por terra, é por território. E território é o direito de pensar o mundo a partir de nós mesmos". A universidade, diz ele, não é o único lugar de saber. O quilombo, com seu trabalho coletivo e oralidade, é um espaço filosófico onde o conhecimento vive.
De Nego Bispo: "A academia pensa que produz conhecimento. Nós pensamos que o conhecimento é vivo, está nas mãos, no canto, no mutirão".
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