
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Há uma tradição no Nordeste de imaginar que a China fica debaixo do chão. Elaborando essa brincadeira, meu amigo José Wilker, morto prematuramente, criou uma peça teatral linda chamada "A China é azul", na qual imaginava coisas que têm no mundo e não conhecemos. Precisamos cavar muito para encontrar e entender.
A China é assim.
Entendemos pouco deste imenso e complexo país.
Agora mais do que nunca é preciso decifrá-lo.
No tabuleiro do século XXI, China e Estados Unidos travam uma disputa que vai muito além de tarifas alfandegárias e avanços militares. Trata-se de uma guerra silenciosa de ideias, na qual cada lado projeta visões sobre o futuro do mundo.
De um lado, estrategistas chineses como Wang Huning e Zhang Yi arquitetam uma narrativa de paciência histórica, inovação tecnológica e disciplina coletiva. Do outro, os "engenheiros do caos" que orbitam Donald Trump - a começar por Steve Bannon - alimentam uma máquina de populismo digital, teorias conspiratórias e ataques às próprias instituições que sustentam a democracia americana.
Essa colisão revela não apenas diferenças de estratégia, mas dois modos opostos de conceber o poder e o futuro.
Wang Huning é o cérebro por trás do "Sonho Chinês", o projeto ideológico que sustenta a China de Xi Jinping. Nos anos 1990, após uma temporada nos Estados Unidos, ele publicou "América contra América", um livro no qual previu com impressionante acurácia as fissuras internas do império norte-americano: desigualdade crescente, individualismo corrosivo e polarização política.
Para Wang, a solução está naquilo que o Ocidente teme: um estado forte, hierárquico e capaz de disciplinar a sociedade. Seu diagnóstico ecoa na estratégia de Zhang Yi, pesquisador da Academia Chinesa de Ciências Sociais, que enxerga as sanções e bloqueios tecnológicos impostos pelos EUA não como uma ameaça existencial, mas como combustível para a autossuficiência chinesa. "Cada restrição americana acelera nossa inovação", afirmou Zhang recentemente.
É o Confucionismo 2.0: uma ordem disciplinada, centralizada e cada vez mais equipada com inteligência artificial e Big Data.
Enquanto isso, em Washington, o cenário é outro. A era Trump revelou uma América seduzida por um nacionalismo visceral e uma retórica que transforma o caos em método. Steve Bannon, seu ex-estrategista, não esconde: é preciso "destruir o sistema por dentro" para reconfigurá-lo.
Giuseppe Di Empoli, em "Os Engenheiros do Caos", chama atenção para a sofisticação desses populistas digitais: eles manipulam algoritmos, viralizam fake news e operam nas sombras das redes sociais para fabricar indignação e reorientar a política.
Não é à toa que Trump ameaçou abertamente o Federal Reserve, buscando dobrar o banco central americano à sua lógica de curto prazo.
O contraste é chocante. De um lado, uma China que aposta na resiliência de longo prazo e em um autoritarismo confucionista reconfigurado para a era da tecnologia. Do outro, uma América onde ideólogos populistas tratam a destruição das próprias instituições como estratégia política.
O filósofo grego Panagiotis Kondylis talvez tenha encontrado a metáfora perfeita para o nosso tempo: uma nova Idade Média, onde o poder se fragmenta em bolhas digitais, elites corporativas e Estados enfraquecidos. O mundo parece oscilar entre uma esfera disciplinada à la Pequim e uma espuma caótica à la Washington.
Resta saber qual modelo prevalecerá - ou se ambos nos condenarão a viver num equilíbrio instável, dividido entre ordem e delírio.
O Novo Nômade Gastronômico
O Grupo Illa, conhecido por seus quatro projetos à Beira-Mar, resolveu fincar o pé na cidade e investiu R$ 5 milhões em um novo restaurante na Rua Leonardo Mota. A promessa: sair do lugar comum. Fui conferir.
A primeira sensação ao entrar, foi de teletransporte para São Paulo. Aquele tipo de restaurante bem montado, com projeto cenográfico caprichado e uma tela gigante exibindo peixes graúdos pendurados. Só depois percebi que a "tela" era, na verdade, um refrigerador com os pescados que iriam para os pratos. Minha impressão de "semiótica paulista" no design não era devaneio: o projeto é mesmo assinado por um escritório de São Paulo.
A proposta da casa gira em torno de um conceito algo fantasioso: um "nômade" que viajou o mundo, aprendeu técnicas culinárias nos quatro cantos e resolveu aplicá-las a ingredientes locais. Ok.
Os chefs são Rafael Martins (do Illa Mare) e Wellington Teixeira Costa (ex-Molino). E o restaurante, batizado de Nom, tem um diferencial real — e raro por aqui: um tratamento acústico impecável. Não tem nada que me irrite mais em restaurantes de Fortaleza do que o volume das vozes reverberando pelas paredes. No Nom, o som é limpo, a música é audível e o ambiente é confortável para conversar. Parece óbvio, mas por aqui é novidade.
Vamos à comida. Confesso que esse papo de "cozinha de várias nacionalidades" costuma me deixar desconfiado. Você conhece algum restaurante com esse discurso que realmente tenha dado certo? Pois é. Eu também não.
Mas fui de mente aberta: pedi um ceviche e um bao de camarão e frango. O ceviche estava ótimo — o peixe manteve seu sabor íntegro, sem exagero nos cítricos. Já o bao… bem rotineiro.
Nos pratos principais, pedimos uma copa de lombo duroc (com glacê de porco e purê de batata-doce) e um pescado na brasa com beurre blanc e belle meunière. Ambos surpreenderam: saborosos, bem executados e aprovados até pelo crivo exigente do Gabo.
O Nom não é caro — mas também não é barato. Conte cerca de R$ 250 por pessoa, com entrada, prato principal e sobremesa. Ah, e falando nela: tem uma sobremesa de R$ 90 com doce de leite. Esconjuro.
No fim das contas, vale a experiência, mesmo com um conceito que não se sustenta muito.
Mas que o porco estava bom, ah, estava.
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