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Der Engel Satanas voltou
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Der Engel Satanas voltou

Márcia Schuback é professora titular de filosofia na Södertörn University
 (Foto: AZIE EDITORA/ DIVULGAÇÃO)
Foto: AZIE EDITORA/ DIVULGAÇÃO Márcia Schuback é professora titular de filosofia na Södertörn University

Em agosto de 1933, Walter Benjamin estava em Ibiza. O calor mediterrâneo, o mar azul e o isolamento pareciam, à primeira vista, oferecer algum repouso ao filósofo judeu-alemão que, poucos meses antes, vira a Alemanha começar a ser tomada pelo nazismo. Mas Benjamin não 0estava de férias. Estava exilado, precário e vigilante — sabendo que seu mundo se despedaçava.

Na ilha, ele escreveu "Agesilaus Santander", um texto breve e enigmático no qual inventa um "nome secreto" para si: um anjo paradoxal, ao mesmo tempo mensageiro e acusador, protetor e tentador.

Segundo Gershom Scholem, amigo íntimo e intérprete de sua obra, aquele nome cifrava um anagrama: Der Engel Satanas — o anjo Satanás. Não era um anjo de asas imaculadas, mas uma figura bifronte, que carregava tanto a promessa de luz quanto a sombra da destruição. Para Benjamin, esse anjo era um companheiro de vida, mas também um presságio: via, na sua própria história, o reflexo distorcido do destino europeu, prestes a ser tragado pelo fascismo.

O verão de 1933 em Ibiza é, assim, um retrato de contradições: um lugar de beleza e calma, habitado por alguém que sabia que a tempestade já estava formada no horizonte. Benjamin escrevia como quem lança garrafas ao mar — mensagens cifradas, destinadas a leitores de um futuro incerto, talvez tão ameaçado quanto o seu presente.

Quase um século depois, vivemos outra paisagem, mas o vento parece soprar de direção semelhante. A ascensão de governantes de extrema direita, a naturalização da violência política, a degradação da esfera pública e a reescrita de mentiras como se fossem verdades não são ecos distantes, mas sinais claros. A história não se repete como cópia, mas como variação: se o anjo de Benjamin olhava para as ruínas acumuladas e via o passado como um campo de destroços, hoje ele poderia olhar para nós e perceber que as ruínas estão sendo construídas em tempo real, diante de nossos olhos.

A pergunta que fica é direta e incômoda: estaremos vivendo a nova visita do anjo do mal? E, se ele voltou, será que ainda traz nas mãos alguma promessa de salvação, ou apenas a tarefa de testemunhar, impotente, enquanto mais uma era de catástrofes se anuncia?

Talvez, como Benjamin, devemos inventar nossos próprios nomes secretos — formas de resistir, de escrever, de nos esconder quando necessário — para enfrentar o que se aproxima. Não para negar a presença do anjo, mas para encará-lo sem ilusões, cientes de que todo anjo carrega, em algum lugar de suas asas, a poeira das ruínas.

O Anjo na Névoa: Walter Benjamin, Márcia Schuback e o Fascismo da Ambiguidade

O anjo quer deter-se, quer recompor o que foi despedaçado, mas é arrastado sem poder fechar as asas. É uma imagem de impotência diante de uma história que acumula desastres e de um futuro que avança sem pedir licença.

Hoje, quase cem anos depois, poderíamos dizer que estamos diante de um anjo semelhante, mas a paisagem mudou. O vento que o empurra não é mais o progresso técnico e industrial do início do século XX, e sim um turbilhão feito de informação, imagens, opiniões e conexões. É um vento espesso, enevoado, que mistura verdades e mentiras, liberdade e censura, democracia e autoritarismo, até que tudo pareça simultaneamente possível e impossível.

É um vento ambíguo — e é nessa ambiguidade que se abre espaço para algo que a filósofa Márcia Sá Cavalcante Schuback chamou, com precisão inquietante, de "fascismo da ambiguidade". Márcia, cearense, vive na Suécia, onde leciona na Universidade de Södertörn.

No fascismo histórico, o inimigo era claro, a retórica direta e as formas de mobilização visíveis: camisas negras, desfiles, culto explícito ao líder. Hoje, nada disso é necessário. O novo fascismo pode se apresentar como "mais democrático que a democracia", usar a liberdade de expressão para atacar a própria liberdade, criar redes para conectar enquanto isola. O campo de batalha não é apenas a rua ou o parlamento — é o próprio sentido das palavras, das relações, da vida em comum.

O método é perverso na sua sutileza: não é proibir, é saturar. Não é silenciar, é falar tanto, de tantos modos e em tantas direções, que o essencial se perde. É fazer com que tudo signifique tudo e, por isso, nada signifique mais nada. Assim se esvazia o sentido: pelo excesso, pela hiperconexão que desconecta, pelo vínculo que não liga, pela opinião que substitui a experiência e o diálogo.

Para Márcia, essa é a antecâmara de um neofascismo planetário — um fascismo que não precisa se nomear para agir, que opera por dentro das democracias, convive com o neoliberalismo global e com as tecnologias mais avançadas, e se alimenta da confusão como combustível político.

O "fascismo da ambiguidade" é um sistema em que objetivos claros — privatizar, explorar, concentrar poder — são alcançados por meio da ambiguação controlada: contradições encenadas, discursos que se invertem conforme a conveniência, valores proclamados ao mesmo tempo em que são corroídos. É a política transformada em espetáculo contínuo, em "reality show" de indignações instantâneas e esquecimentos imediatos.

Benjamin imaginava um anjo que queria salvar o passado, mas era arrastado para frente. O nosso anjo de hoje, se quiser sobreviver, precisa atravessar a névoa e encontrar pontos de ancoragem no presente — antes que a confusão se torne método absoluto e irreversível. É exatamente sobre isso que Márcia Sá Cavalcante Schuback falará em sua conferência "Mentira e Realidade: As novas faces do fascismo".

A filósofa não propõe respostas fechadas, mas um exercício que chama de "política do sentido": recuperar a precisão poética, artística e ética. Não a precisão rígida e unívoca do autoritarismo clássico, mas a precisão que abre espaço, que permite discernir sem sufocar, que sustenta a diferença sem dissolvê-la no ruído. É o que ela encontra, por exemplo, na poesia mínima e cortante de Orides Fontela e no conceito musical de "ligadura" — continuidade que preserva a singularidade de cada nota.

Num momento em que tudo parece confuso demais, talvez o gesto mais radical seja este: aprender a ver, ouvir e falar de modo que o sentido não se perca. Se não o fizermos, o vento da ambiguidade continuará a soprar — e, como no quadro do anjo de Klee, nosso anjo será levado para um futuro em que a democracia já não saberá distinguir-se do seu oposto.

É na próxima sexta-feira, 22, às 10 horas. Uma conferência importantíssima para entendermos melhor os terríveis tempos que vivemos.

Conferência "Mentira e Realidade: As novas faces do fascismo"

Com Márcia Sá Cavalcante Schuback (Universidade de Södertörn, Suécia)

Quando: sexta-feira, 22, às 10 horas

Onde: Auditório da Reitoria (Avenida da Universidade, 2853 - Benfica)

Aberto ao público

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