
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
1. O vácuo político não é ausência, mas excesso de uma presença: o camilismo operado, com exceções como Evandro Leitão, por um empirismo de baixo repertório, que ocupa todos os espaços.
2. No interregno, dizia Gramsci, "o velho morre e o novo não nasce". No Ceará, todos neste momento, ao mesmo tempo, insistem em se mover: o camilismo, Ciro, Cid, Tasso e Roberto Claudio e a extrema-direita.
3. Weber adverte: o político vive para o poder e do poder. O vácuo não é silêncio, mas fome de oportunidade. A oportunidade de engolir uma extrema-direita que consegue falar com um eleitor que as lideranças de centro não conseguem mais.
4. Maquiavel recorda que a fortuna abre brechas inesperadas para o Virtù. O vácuo é essa brecha. Mas nem toda porta leva a um palácio, algumas levam a abismos.
5. A extrema-direita oferece ao trio (Ciro, Tasso e RC) a chave de uma língua que eles e o camilismo não falam: a dos trabalhadores precarizados, dos "pobres de direita" de Jessé Souza, que já não esperam pelo Estado e preferem o risco à espera.
6. Arendt sussurra: alianças oportunistas podem arrastar as elites políticas para destinos que não escolheram.
7. Schmitt ergue a mão: no estado de exceção ou de poder sem fissuras, ou coisa parecida como hegemonia fechada, quem decide é o soberano. Ao aceitar a exceção, não se decide: se é decidido.
8. Paxton e Sternhell lembram: Mussolini não nasceu fascista; fez-se no vácuo. Oportunidade e desespero podem ser máscaras da mesma força.
9. O camilismo é hoje dono do castelo, a extrema-direita é abismo. Entre ambos, as lideranças de oposição cearenses caminham sobre uma ponte de corda.
10. Benjamin dizia: todo documento de cultura é também documento de barbárie. Talvez este momento político seja já o documento da barbárie por vir.
11. O vácuo não é vazio, mas campo magnético: atrai, distorce, aprisiona. Quem entra, não sai pelo mesmo caminho.
12. A história não repete Mussolini (aquele que nasceu na esquerda e se transformou em exemplo de direita), mas ecoa sua lógica: a oportunidade pode transformar-se em prisão, o cálculo em destino.
13. Entre o castelo ocupado hegemonicamente pelo camilismo e o abismo que a extrema-direita representa, a oposição do Ceará escreve hoje suas teses de melancolia política.
O Império Cibernético e a Ruína Anunciada: o projeto da extrema-direita mundial.
Escrevo em minha única semana de férias na universidade. Uma semana curta, que deveria ser leve, mas que se tornou densa. Assisti ao filme "O Brutalista", reli dois filósofos italianos que sempre me inquietaram, Domenico Losurdo e Giorgio Agamben, e, como todo brasileiro atento, fui arrastado pelo tsunami midiático da cobertura sobre o julgamento de Bolsonaro. Três experiências distintas, mas que, no choque dos dias, se costuraram em uma só reflexão: o Brasil e o mundo vivem um momento de perigo decisivo.
No Congresso, discute-se a possibilidade de uma anistia. Se aprovada, ela não será apenas o perdão de crimes políticos recentes; será a transformação da exceção em regra, a normalização da impunidade, a instalação de um país ingovernável. O Brasil nunca conseguiu se libertar de sua esteira autoritária: a marca da escravidão, o racismo estrutural, a desigualdade que insiste em ser destino, a violência cotidiana, a intolerância que se mascara de moralidade. Nosso parlamento, hoje, encarna essa herança: mais que casa da democracia, é o espelho do atraso.
É nesse contexto que me chega às mãos o livro "O Projeto: como a extrema-direita transformou os Estados Unidos", de David A. Graham, lançado agora no Brasil. Leio suas páginas como quem folheia a cartilha da direita contemporânea. O texto mostra como o "think tank" conservador Heritage Foundation articulou um plano minucioso para reorganizar o Estado norte-americano por dentro: enfraquecer instituições independentes, aparelhar agências, reduzir políticas sociais, dar centralidade a uma moral autoritária e, ao mesmo tempo, abrir espaço para o poder econômico. Não se trata apenas de uma agenda eleitoral: é um projeto de hegemonia de longo prazo, capaz de ultrapassar presidentes e governos. Ao ver esse lançamento brasileiro, percebo que não estamos diante de um documento que parece distante, mas de um manual de instruções que já inspira movimentos políticos no nosso país.
A direita brasileira não age sozinha. É uma peça de uma engrenagem maior. O livro revela esse fio subterrâneo: um gabinete internacional que conecta a direita de Brasília a Washington. A lógica é clara: corroer a legalidade por dentro, organizar a exceção, vestir o autoritarismo com as roupas da liberdade.
É aqui que Losurdo ilumina: a "linguagem do império" é uma gramática de máscaras. Quando os EUA falam em liberdade, anunciam intervenção; quando falam em direitos humanos, preparam guerra; quando falam em segurança, instituem vigilância. Palavras que brilham para ocultar o gesto de dominação.
E o cinema traduz essa gramática. "O Brutalista" é mais do que uma narrativa de imigração: é uma parábola do império. O arquiteto estrangeiro ergue um edifício monumental nos Estados Unidos. Sua obra é de concreto áspero, pesado e indestrutível. Mas o que se ergue não é abrigo: é símbolo de poder. O artista é absorvido, sua vida é apagada. O brutalismo arquitetônico é a estética do império: grandiosa, autoritária, indiferente.
Agamben completa o quadro: o estado de exceção já não é provisório; tornou-se regra de governo. Nos EUA pós-11 de setembro, e também no Brasil da crise política, a suspensão da lei tornou-se o verdadeiro funcionamento da lei. O que o projeto planeja na política, o brutalismo encarna na estética, Losurdo denúncia na linguagem e Agamben revela na norma.
Tudo isso me atravessou de uma só vez nesta semana: o filme como fábula, os filósofos como diagnóstico, o noticiário como espetáculo de repetição e o livro como revelação de método. Era como se o concreto tivesse se adensado no ar, como se respirássemos brutalismo.
Mas até o concreto racha. Todo edifício, por mais imponente que seja, carrega suas fissuras. O enfrentamento começa aí: nas trincas. Enfrentar é não aceitar a máscara da linguagem, é recusar a naturalização da exceção, é lembrar que a democracia não é fachada monumental, mas espaço frágil, vivo, vulnerável.
O império ergue seus prédios brutalistas, mas é sempre nas frestas que a luz passa.
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