
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
A entrevista é uma das ferramentas mais tradicionais da pesquisa nas ciências sociais, mas também uma das mais complexas. Se, por um lado, permite ao pesquisador acessar representações e narrativas de grupos sociais, por outro, arrisca reduzir a pluralidade de disposições a imagens simplificadas e homogêneas.
Bernard Lahire, em "O homem plural" (1998), formulou uma das mais consistentes críticas a esse uso da entrevista, chamando atenção para os riscos metodológicos e epistemológicos da tomada de falas isoladas como retrato fiel da realidade.
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À luz dessa crítica, o estudo Brasil no Espelho, realizado pela Quest/Genial Globo a pedido da Globo, merece um exame detido. Com quase dez mil entrevistas, o projeto se apresenta como o maior levantamento sobre valores e percepções no País.
Mas, mais do que um espelho neutro do Brasil, trata-se de um dispositivo de comunicação: sua edição, divulgação e interpretação funcionaram como estratégia política da Globo para reposicionar sua linha editorial, reforçando um discurso conservador e justificando mudanças internas, inclusive a demissão de jornalistas vistos como de esquerda, como Daniela Lima, que acabou sendo contratada pela UOL em grande estilo.
O afastamento de Bonner para se poupar dos ataques bolsonaristas e a ascensão do imberbe e fraco Nilson Clava. Sem falar do novo apresentador do Jornal Nacional, César Tralli, que parece conseguir uma certa simpatia da elite paulista, segundo as pesquisas.
Em "O homem plural", Lahire argumenta que os indivíduos não são portadores de um único habitus coerente, mas de múltiplas disposições adquiridas em contextos diversos — família, escola, trabalho, religião, vizinhança. Essas disposições podem entrar em contradição e se manifestar de forma situacional.
-Ela tende a capturar narrativas simplificadas, muitas vezes moldadas para agradar ao entrevistador ou ao contexto midiático.
-Ela arrisca naturalizar contradições, apresentando identidades "bem acabadas" que não correspondem à complexidade da vida social.
-Ela é marcada por relações de poder, onde quem pergunta controla o enquadramento do que será tomado como relevante.
-Ela exige confrontação com práticas reais e múltiplos contextos, sem o que a análise se torna apenas interpretação de discursos.
Para Lahire, o pesquisador precisa resistir à tentação de transformar entrevistas em "espelhos" da sociedade. Elas são construções situadas, que só ganham sentido pleno se cruzadas com observação etnográfica, dados objetivos e múltiplas vozes.
O estudo da Globo/Quest produziu sínteses com resultados impactantes:
96% dos brasileiros consideram a família o que há de mais importante; 89% afirmam que ela vem em primeiro lugar nas decisões.
86% têm alguma religião, 97% consideram Deus muito importante e 86% afirmam que a fé vale mais que a ciência.
Mais da metade se sente cansada, e 60% não se sentem seguros.
85% dizem ter orgulho do País, embora a maioria não saiba responder corretamente a questões básicas sobre desemprego, homicídios ou economia — um exemplo clássico do efeito Dunning-Kruger.
O fenômeno é conhecido como efeito Dunning-Kruger, definido em 1999 a partir dos estudos de dois psicólogos americanos, David Dunning e Justin Kruger. Segundo o psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Christian Dunker, o fenômeno explica dois efeitos diferentes. O primeiro diz respeito aos indivíduos que conhecem pouco uma atividade e a realizam mal ou pior que os outros, mas tendem a superestimar os seus conhecimentos. Enquanto o segundo apresenta o efeito oposto, sendo possível observar que sujeitos que apresentam vasto entendimento sobre algumas áreas tendem a acreditar que não conhecem tanto daquele assunto.
O quadro traçado é o de um Brasil orgulhoso, religioso e familiarista, mas conservador em gênero, inseguro, cansado e desinformado.
À luz de Lahire, no entanto, esse "espelho" não reflete a pluralidade de disposições, mas a cristalização de certos arquétipos: o brasileiro religioso, o brasileiro que valoriza a família, o brasileiro que confia mais na fé que na ciência. A edição e a divulgação reforçam imagens estáveis e unitárias, ignorando tensões e contradições presentes nas trajetórias individuais.
Os dados de quase dez mil entrevistas, em vez de serem explorados em sua diversidade, foram convertidos em leituras apressadas feitas por quem não entende de pesquisas complexas. O resultado é uma pesquisa que, mais do que compreender a sociedade, busca produzir um retrato performativo do País, destinado a orientar tanto a audiência quanto a linha editorial da emissora.
O uso público do estudo revela sua função política. Ao enfatizar religiosidade, conservadorismo de gênero e desinformação da população, a Globo desloca seu discurso em direção a uma pauta mais afinada com a direita cultural.
Esse reposicionamento teve consequências internas: jornalistas e comentaristas identificados com posturas progressistas estão sendo gradativamente afastados ou demitidos, enquanto novas vozes, mais próximas ao conservadorismo "majoritário" captado pela pesquisa, ganharam espaço. A pesquisa, nesse sentido, não apenas descreve a sociedade, mas serve de álibi para justificar uma virada editorial, apresentando-a como resposta natural às "vozes do Brasil".
O que Lahire nos ajuda a ver é que esse processo não é científico, mas político. Em vez de mostrar o "homem plural", cheio de disposições contraditórias, a pesquisa foi transformada em um instrumento de homogeneização simbólica, que legitima tanto uma guinada midiática quanto um realinhamento ideológico da principal emissora do País.
O Brasil no Espelho não é um espelho, mas uma construção. Como ensinou Bernard Lahire, entrevistas e pesquisas de opinião nunca revelam de forma direta a complexidade do real, são narrativas situadas, moldadas por quem pergunta, por quem responde e por quem edita.
Ao usar a pesquisa como dispositivo de comunicação, a Globo reafirmou seu papel de produtora de consensos: reduziu a multiplicidade brasileira às imagens simplificadas, reforçou uma agenda conservadora e justificou mudanças internas alinhadas à direita. O verdadeiro Brasil plural, com suas contradições, tensões e disposições múltiplas, ficou fora de quadro.
O que se vê, portanto, não é o Brasil no espelho, mas a Globo diante de si mesma — reorganizando sua identidade política e simbólica sob o pretexto de dar voz ao país a partir dos interesses geniais (a Genial, empresa de finanças e sócia da Quest, está envolvida até o pescoço no escândalo da lavagem de dinheiro do PCC pelo mercado financeiro). A pergunta é: por que as novelas - desde a ditadura - fugiram deste consenso e fizeram a Globo ser o que é?
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