
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Da janela do meu apartamento vejo o cenário de fogos que o Comando Vermelho explode para comemorar a tomada dos territórios. Hoje é segunda-feira e eles comemoram a tomada do Lagamar. Essa semana o Comando Vermelho (CV) assumiu Fortaleza.
A afirmação de que o CV celebra a tomada do controle de Fortaleza, ao mesmo tempo em que o Primeiro Comando da Capital (PCC) domina São Paulo, aponta para um fenômeno de profundas implicações sociológicas: a consolidação de poderes paralelos nas grandes metrópoles brasileiras. Esse processo não se limita ao crime organizado, mas constitui uma transformação estrutural do campo do poder e da vida social urbana. A partir da sociologia da violência e da teoria do Estado, é possível compreender esse fenômeno como expressão da crise da soberania estatal e da emergência de novas formas de regulação social.
E embora a extrema-direita tente associar o CV ao PT e às esquerdas, ele é sócio da Faria Lima e da direita porque nasce, assim como o PCC, em São Paulo, da falência do Estado do bem-estar social no Brasil, da desigualdade e de sua impotência.
Max Weber definiu o Estado moderno como a entidade que detém o monopólio legítimo da violência física dentro de um território. Quando facções como PCC e CV assumem o controle de espaços urbanos, esse monopólio é rompido. O Estado passa a disputar a autoridade com organizações armadas que, em muitos casos, exercem funções estatais informais: julgam, punem, mediam conflitos e cobram tributos.
Michel Misse descreve isso como a formação de uma "mercadoria política": a violência se converte em recurso de poder e acumulação, podendo ser negociada com agentes estatais ou privados. Assim, o controle de Fortaleza pelo CV e de São Paulo pelo PCC revela um paralelismo de soberanias: o estado formal convive com estados subterrâneos que, em certos territórios, têm mais eficácia que as instituições oficiais.
O crescimento urbano desigual, marcado pela segregação espacial e pela escassez de políticas públicas, criou nas periferias um vazio de regulação estatal. Esse vazio é preenchido por grupos que impõem uma ordem perversa: garantem segurança e pertencimento, mas pela via da violência e da coerção.
Para muitos jovens da periferia, o ingresso em facções representa não apenas uma forma de renda, mas uma via de reconhecimento social. Loïc Wacquant fala da formação de "guetos urbanos" onde a exclusão econômica e simbólica se entrelaça, criando populações estruturalmente marginalizadas. No Brasil, essas populações encontram nas facções uma possibilidade de pertencimento.
Assim, substitui-se o contrato social por aquilo que poderíamos chamar de contrato de medo: a obediência e a coesão não vêm de uma adesão cidadã às leis do Estado, mas da intimidação e do risco de punição sumária. O tráfico e as facções criam uma gramática de poder em que o medo é o cimento das relações sociais. As facções não são apenas organizações criminosas: elas são também produtoras de cultura. Sua presença se manifesta na música (funk proibidão, rap de facção), nas tatuagens, nas gírias e até mesmo nas narrativas épicas que circulam nas quebradas. Há uma dimensão simbólica em que o poder das facções é naturalizado e até glorificado, sobretudo nas juventudes periféricas. Esse processo revela a crise do Estado como produtor de sentido coletivo. Se em outros momentos a escola, a religião ou a política partidária organizaram a vida simbólica, hoje as facções assumem parte dessa função, oferecendo identidade, pertencimento e imaginário.
Sociologicamente, o controle de Fortaleza pelo CV e de São Paulo pelo PCC:
O Comando Vermelho nasceu em um espaço de exclusão e violência: o presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, durante os anos da ditadura militar. Ali, presos políticos e criminosos comuns conviviam. Os militantes de esquerda ensinavam noções de organização coletiva, disciplina e solidariedade. Os presos comuns traziam a lógica do crime.
Da fusão desses dois mundos surgiu uma espécie de irmandade do cárcere, que inicialmente se chamava Falange Vermelha. O lema era claro: "paz, justiça e liberdade". O que parecia, a princípio, um movimento de autodefesa contra a brutalidade do sistema prisional, rapidamente se transformou em um projeto de poder criminal, ampliado pelo tráfico de drogas e pela rede de solidariedade entre presos e comunidades do Rio. Nos anos 1980 e 1990, o CV se expandiu com o crescimento do tráfico de cocaína.
A presença do Comando Vermelho no Ceará é recente, mas explosiva. A partir da década de 2010, Fortaleza se tornou corredor estratégico do tráfico internacional, por sua posição no Atlântico e conexões com a África e a Europa.
Facções locais, como a Guardiões do Estado, disputavam territórios. Nesse contexto, o CV firmou alianças e gradualmente passou a dominar áreas da Capital e do Interior. Os confrontos entre facções rivais fizeram explodir os homicídios em 2017, quando o Ceará registrou uma das maiores taxas da sua história: 60 mortes por 100 mil habitantes.
Hoje, com maior controle, o CV tenta se apresentar como "hegemonia" em Fortaleza, impondo disciplina e reduzindo a guerra aberta. Isso não significa paz, mas sim um tipo de ordem imposta pela força.
O Comando Vermelho não se sustenta apenas pela força das armas. Ele produz uma cultura própria: músicas que glorificam seus líderes; grafites e pichações que marcam território; discursos de proteção às comunidades contra abusos policiais.
Essa dimensão simbólica dá ao CV um papel ambíguo: ao mesmo tempo em que é expressão da violência estrutural, torna-se também fonte de identidade e pertencimento para jovens das periferias.
Na varanda, meu filho corre quando os fogos riscam o céu. Para ele, não passam de estrelas coloridas, desenhos instantâneos que se abrem e desaparecem no ar. A cena é de festa. Para mim, porém, esses fogos carregam outro peso: são sinais de fronteiras alteradas, de territórios ocupados, de guerrilhas que se insinuam no coração da cidade. Os fogos do Comando Vermelho celebram o Setembro Vermelho, mas também encenam o espetáculo da modernidade periférica: uma infância moldada pelo clarão da pólvora, pela naturalização da violência como se fosse cor de festa.
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