
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
A política cearense e, em sentido mais amplo, a nordestina, não pode ser compreendida pela lente tradicional do patrimonialismo elaborada por autores do eixo sudestino, como Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda.
Essa leitura, como bem critica Jessé Souza ("A Elite do Atraso"), transformou o patrimonialismo em uma espécie de "vício moral hereditário" das classes dirigentes brasileiras, como se o atraso político fosse uma questão de cultura familiar e não da combinação entre as relações de colonialidade do poder (formadoras da nossa estrutura social) e da desigualdade histórica.
No Nordeste, em alguns casos, as famílias políticas não são simples relíquias oligárquicas. Elas emergem como estruturas de sociabilidade, formando laços de lealdade, que se organizam e se articulam para manterem comando em contextos marcados pela escassez, pela incapacidade de afirmação efetiva do Estado e pela fragilidade das instituições.
Esses clãs familiares, longe de representar apenas o atraso, foram, e ainda são, mecanismos de proteção, mediação e legitimidade simbólica.
Neles, o poder se reproduz tanto pela herança quanto pela subtração do Estado que a família substitui: o nome substitui a instituição e o prestígio simbólico ocupa o lugar da confiança pública.
Essa estrutura híbrida, entre a tradição e a racionalidade moderna, pode ser chamada, no sentido bourdieusiano, de campo familiar de poder: um espaço de interdependência moral e política onde o capital simbólico da honra familiar se converte em capital político.
No Ceará contemporâneo, essa forma de poder se corporifica em duas linhagens paradigmáticas:
Os Santanas, oriundos do sertão de Quixeramobim e do Cariri, em Barbalha;
E os Ferreira Gomes, nascidos em Sobral e com confluência paulista.
Ambas as famílias encarnam um tipo de modernidade em que a técnica, a fé, a escola e a lealdade se entrelaçam na construção do poder.
A família Santana nasce do encontro entre dois mundos simbólicos, Quixeramobim e Barbalha, e entre duas vocações complementares: a razão técnica distributiva de Eudoro e a sensibilidade social de Ermengarda.
Nascido em Quixeramobim, Eudoro Walter de Santana (1936-) formou-se engenheiro civil pela Universidade Federal do Ceará, trabalhou na Petrobras e foi perseguido pela ditadura militar de 1964.
Essa experiência marcou sua prática política: tornou-se uma ética de reconstrução. Planejar, para Eudoro, era um ato moral (no sentido durkheimiano), governar, uma forma de reparação. O ethos sertanejo da escassez, aliado à disciplina do engenheiro.
O sertão que o formou é o espaço do esforço coletivo e da solidariedade, a pedagogia da sobrevivência. Seu gesto político é o da ponte: unir margens. Dele vem a linguagem da moderação, a crença no planejamento e a defesa de um Estado de gestão técnica.
Ao lado de Eudoro, surge Ermengarda Maria de Amorim Sobreira, assistente social e liderança política em Barbalha.
Durante o exílio político do marido, transformou o refúgio em ação e militância: foi candidata e articuladora política e uma perspicaz mediadora simbólica. O discurso técnico de Eudoro se transforma em linguagem popular da empatia e da dádiva em termos maussianos. Evoca o princípio feminino do poder comunitário com a capacidade de dar sem perder, de cuidar, sem se submeter. A síntese entre Eudoro e Emengarda é uma linhagem política da qual emerge a figura conciliadora de Camilo Santana.
Os Ferreira Gomes: racionalidade, mérito e a pedagogia republicana
Os Ferreira Gomes representam o racionalismo pedagógico de Sobral, cidade episcopal e ilustrada, marcada pela tradição da Igreja, da escola e da ordem.
Nascido em Sobral, José Euclides Ferreira Gomes Júnior formou-se em Direito e Geografia/História pela antiga Universidade do Brasil (UFRJ). Foi professor de Sociologia e Antropologia, advogado e prefeito de Sobral (1977-1983).
Sua visão de mundo unia o humanismo do jurista ao método do educador. Para ele, governar era educar a cidade, instaurar um espírito público pela instrução e pela disciplina.
Essa concepção, é herdeira de Dom José Tupinambá da Frota, gênio (doutor em Roma aos 24 anos) que faz da política uma forma de moral coletiva: o poder como pedagogia.
José Euclides é o arquiteto moral do novo sobralismo pós-Dom José: um modelo de racionalidade administrativa e republicanismo ilustrado em que o Estado é o valor supremo e o conhecimento, a emancipação.
Mas essa racionalidade, embora moderna, não rompe o elo familiar, antes, o reforça.
O mérito é hereditário, a cultura, capital simbólico, e o saber, a nova forma de distinção.
A esposa de José Euclides, Maria José Santos Ferreira Gomes, nasceu em São Paulo e tornou-se professora. Levou ao Ceará o espírito pedagógico do interior paulista, o método, a ordem e a vocação moral da escola.
Em Sobral, tornou-se o centro doméstico da educação e disciplina: a casa, sob sua direção, era extensão do colégio. Palavra e estudo eram os pilares da convivência.
Maria José não era apenas esposa, mas coautora de um projeto político e pedagógico familiar. A racionalidade republicana de José Euclides encontrava nela o instrumento de formação cotidiana.
Os clãs políticos cearenses são estruturas de mediação entre o Estado e a sociedade, criadas em meio à escassez institucional e à desigualdade histórica.
Eles representam tanto uma forma de sociabilidade quanto uma forma de dominação. Em termos de Jessé Souza, trata-se de uma elite que se legitima pela gestão política e pela técnica, não mais pela terra ou pela força.
No Ceará, essa elite (elite intelectual e política nestes casos) assume feições locais: a "elite da escassez" e a "elite da instrução".
Ambas operam segundo o mesmo princípio bourdieusiano: transformar capital simbólico (moral, educativo ou religioso) em capital político.
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