Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Você, meu leitor dominical do O POVO, talvez nunca tenha sido "cobrado" por uma facção. Mesmo assim, ela interfere no preço que você paga em diversos serviços e impostos, nas políticas que recebe e na qualidade da democracia em que vive.
O erro é imaginar que se trata apenas de "guerra entre bandidos".
Facção forte significa: Estado fraco onde ela reina e um Estado pressionado, caro e menos eficaz para os demais. O pacto repugnante de governadores de extrema-direita prega exatamente o contrário. Eles querem Estado fraco e polícia forte para matar. É o que Achille Mbembe chama de necropolítica. Para combater as facções é preciso um Estado forte, inteligente e democrático. Nada parecido com o feito do energúmeno governador do Rio de Janeiro. É preciso desmontar a economia invisível.
A contribuição recente do pesquisador Roberto Uchôa ajuda a entender o porquê: a receita das facções é diversificada e está ancorada no controle territorial. Não se trata só de drogas. Há "taxa de segurança" sobre comércio, cobrança por ligações clandestinas, intermediação forçada de aluguel, controle do transporte alternativo, pedágios logísticos, revenda de botijões e até "licença" para festas, bailes, cultos e eventos. Tudo isso transforma moradores em base de arrecadação permanente, um mercado cativo, sem direito de escolher fornecedor.
Bruno Paes Manso já havia descrito essa virada empresarial: o crime descobre que estabilidade e previsibilidade de caixa valem mais do que batalhas diárias por território. A facção passa a operar como franquia: filiais locais, metas, repasses e auditoria violenta. Onde o Estado chega apenas com o encaminhamento ao IML ou com burocracia lenta, o "gerente" do crime chega antes, resolve conflitos, "garante" a ordem e cobra a fatura. É a privatização armada do cotidiano.
Para sustentar essa máquina, há uma logística: prisões que funcionam como central de comando, contabilidade de caixa via laranjas e criptos, compra de atacado de insumos ilícitos e lícitos, estoque de armas e munições, uso das redes para monitorar rivais, polícia e moradores. O objetivo não é o confronto eterno; é reduzir o custo da violência para maximizar lucro. Quando o risco aumenta, operações constantes, concorrência acirrada, perda do "ponto", a facção migra para outra fonte: mais cobrança sobre moradores e serviços.
Perdemos muito tempo discutindo "represália" e "guerra de facções" e quase nada dizendo que o crime organiza um verdadeiro funil de recrutamento e formação de jovens. Não é só captar "braços": é socializar, treinar e fidelizar. O pipeline (fluxo sequencial do processo) começa no território, escola vulnerável, quadra, beco, campinho, baile e redes sociais, onde a facção identifica talento e necessidade: quem precisa de renda imediata, quem busca proteção, quem quer pertencimento. Entra em cena a economia da dívida (adiantamento de mercadoria, moto, celular), os pequenos favores e a promessa de status. Vêm depois ritos e códigos ("batismo", "estatuto"), que estabelecem lealdade, silêncio e disciplina, produzindo coesão e reduzindo deserção.
O treinamento é prático e contínuo. Ensina-se vigilância de área, montagem e rotação de pontos de venda, contabilidade básica do varejo, logística (estoque, transporte, rotas de fuga), segurança da informação (chips descartáveis, mensagens efêmeras, gírias e protocolos), manuseio de armas e "tribunais" internos para resolver conflitos e punir desvios. Há uma ética invertida, "proteger os nossos, calar contra o Estado", reforçada por recompensas materiais (adiantamentos, festas, "patrocínios") e por punições exemplares. Tecnologia barata (apps de mensagem, geolocalização, maquininha, Pix) vira prótese operacional que acelera o aprendizado e a escala do negócio.
Se quisermos contrarrecrutar, a resposta tem que mirar o mesmo funil. 1) Proteção de trajetórias: aprendizagem remunerada de entrada rápida (quatro a seis meses), bolsas de permanência e tutoria intensiva para quem está na borda do aliciamento. 2) Presença combinada escola-rua: educadores de base polícia de proximidade com busca ativa e resposta rápida para adolescentes mapeados como alvo. 3) Desmontar a "escola do crime" em prisões e centros socioeducativos: separar por perfil e facção, cortar governança informal, abrir rotas reais de estudo e trabalho pagas e seguras. 4) Governar o tempo livre com esporte, cultura e tecnologia ancorados em pares e lideranças locais, não "evento", mas rotina. 5) Reduzir o prêmio do crime no curto prazo: apertar fluxos de armas, motos e celulares, e estrangular as pontes logísticas que sustentam o varejo. Experiências exitosas mostram que combinar dissuasão focalizada com alternativas imediatas e acompanhamento funciona quando há foco territorial e coordenação. Sem isso, a polícia seguirá correndo atrás do que a escola do crime produz todos os dias.
O ponto novo é bastante incômodo: por que tanta gente comemora execuções? Como lembra Vera Iaconelli, há um desejo social de vingança que encontra eco em campanhas oportunistas. O espetáculo do "bandido bom é bandido morto" oferece catarse barata para medos reais. Mas esse aplauso tem custo: legítima mortes sem processo e políticas de extermínio que não desarticulam redes, apenas trocam peças. E, paradoxalmente, fortalecem o negócio da facção, que se alimenta de territórios traumatizados, sem confiança cívica e sem Estado de bem-estar.
Quando a população é ensinada a aplaudir a morte em vez de exigir resultado, abre-se espaço para governos que prometem sangue e entregam abandono: escolas sucateadas, urbanismo ausente, serviços capturados. A facção agradece: onde não há luz pública, endereço, titulação, transporte regulado e mediação institucional de conflitos, ela ocupa.
"Guerra" genérica não resolve. O que funciona é política pública integrada e persistente, aquilo que a direita punitivista chama de "romantização" e que os tecnocratas costumam abandonar ao primeiro tropeço.
Policiamento territorial de proximidade: equipes fixas por área, metas de redução de violência letal e de denúncias de extorsão, com avaliação pública mensal. Polícia que conhece nome, rua e rotina, e é conhecida por elas.
Controle do dinheiro: inteligência financeira municipal/estadual para rastrear fluxos pequenos e constantes (gás, transporte, internet pirata, pedágios). Prisão sem asfixia financeira é vitrine para foto, não política de segurança.
Governo dentro do bairro: iluminação total, endereçamento formal, escritório do Estado com defensoria, mediação de conflitos, Cras, saúde da família e assistência jurídica para empreendedores saírem da informalidade coercitiva.
Regulação de serviços: atacar os monopólios paralelos. Linha regular de ônibus/vans que funcione, gás com preço acessível e entrega segura, internet legal com instalação rápida, cartório móvel para contratos e registros.
Sistema prisional sob controle público: separar lideranças, impedir gestão remota e oferecer porta de saída (educação, trabalho, remissão de pena) para reduzir recrutamento compulsório.
Foco em homicídios: interrupção de ciclos de vingança (modelo de violência interruption), proteção de testemunhas e conciliação comunitária mediada por Estado, não por pistola.
Juventude como prioridade: escola em tempo integral onde a evasão é alta, trabalho-aprendizagem pago e cultura/esporte todos os dias. É caro? Mais caro é financiar eternamente a "guerra" que não entrega paz.
O que não funciona: operações midiáticas sem continuidade, gratificação por "apreensão recorde" que não muda mercado, terceirização de políticas sociais para ONGs isoladas, e, sobretudo, política do aplauso às execuções, que só renova o ciclo.
As facções se tornaram empresas de exploração do cotidiano. Elas não só matam: cobram, organizam, regulam e faturam. Combatê-las é recuperar o óbvio: a comunidade não é mercado e a vida não é negócio.
Para você, que se acha distante, o recado é curto: ou você financia políticas de Estado que disputam território, dinheiro e lealdade ou continuará pagando a conta, em silêncio, no caixa do supermercado, na fatura do seguro e na erosão da sua própria cidadania. E o pior: sendo cúmplice em operações de matança que só servem para dar visibilidade a incompetentes.
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