Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
A Kantar Ibope Media revelou, recentemente, um relatório sobre a audiência da televisão linear e do streaming. Os dados dão a medida de quanto público "migrou" da TV aberta para o streaming e, sobretudo, do quanto "não" migrou. Ao contrário dos Estados Unidos, entra ano, sai ano, a TV aberta segue líder de entretenimento no Brasil. Segundo o Ibope, seu share (fatia de audiência) permanece mais de três vezes superior à soma de todas as plataformas de vídeo on-line, do YouTube à HBO Max. Nenhum outro meio entrega tanta audiência simultânea quanto a TV aberta.
KANTAR IBOPE MEDIA-2025
Share de Audiência (%)
TV Aberta: 57,6%
TV Paga: 8,0%T
Total : 65,7%
Todos os dispositivos - Vídeo Online: 35%.
Disney: 0,4%; Globoplay: 1,7%; HBO Max: 0,3%; Netflix: 4,5%
Prime Video: 1,1%; TikTok: 4,8%; YouTube: 20,4%; Outras: 1,0%
Ou seja: a Globo continua incólume mandando na TV Aberta . Leia-se: novelas e Jornal Nacional.
Para entender o Brasil, é preciso entender a força das novelas. Elas espelham o País e organizam o nosso drama social em forma popular. Dois exemplos bastam: "Vale Tudo" e a nova "Três Graças".
"Vale Tudo" (1988) expôs o país do "banana, Brasil": donos de companhia aérea, dólar no bolso, porta giratória entre poder e negócio. A TCA, de Odete Roitman, virou símbolo do mando que atravessa o interesse público; Marco Aurélio fecha a história fugindo e "dando uma banana" ao País — cena que entrou no imaginário coletivo. Não era "jeitinho do povo"; era o alto comando ensinando a regra do jogo.
"Três Graças" (2025) atualiza o truque. Sai a estatal como palco do desvio; entra a fundação de fachada que posa de benfeitora e entrega remédios fajutos ao povo. No centro, uma família paulista-italiana, os Ferreti, que transforma caridade em negócio. A narrativa alterna dois cenários: o bairro popular da Chacrinha e a mansão num bairro aristocrático de São Paulo, à moda Morumbi. Da fila do posto à sala com vista, a novela mostra quem decide e quem paga a conta.
Há um dado surpreendente aqui. Ao contrário da velha conversa que empurra a corrupção para a "cordialidade" popular ou dilui tudo em "culpa dos políticos", essas tramas não culpam o povo, miram os de cima. Odete Roitman e os Ferretti não são amenos em casa e cínicos na rua: são duros em qualquer cenário. De "Vale Tudo" à "Três Graças", muda a fantasia, não a lógica: antes era o dólar no terno, agora é a bondade terceirizada sob o selo de fundação.
No comando de tudo, a elite colonizada que adora Miami e torce por Trump que faz o Brasil ser Brazil.
Talvez esteja aí o segredo do nosso folhetim: quando a novela acerta, ela organiza a conversa nacional porque aponta onde dói. É por isso que, no Brasil, a TV aberta segue fazendo o País falar de si mesmo, capítulo a capítulo, entre a Chacrinha e o Morumbi. É por isso que digo aos meus alunos, que me olham espantados: querem entender o que o País pensa de si mesmo? Siga as novelas da Globo.
Quem faz a cabeça do Brasil (e por quê).
O ranking do Reuters Institute não lista só jornalistas: põe no mesmo balaio políticos, apresentadores de TV, repórteres de celebridades e influencers de beleza. Ele re-define "notícia" como um fluxo de opinião entretenimento identidade. O traço dominante salta aos olhos: a constelação que mais mobiliza audiência nas plataformas é majoritariamente de direita, com alguma ancoragem no telejornalismo tradicional e raríssimas exceções progressistas. O Brasil está consumindo política em formato de celebridade.
Como ler esse cenário em poucas palavras (sem moralismo bobo):
Adorno (indústria cultural): plataformas padronizam afetos e vendem indignação portátil. O "novo" é um template: manchete hiperbólica, antagonista claro, recompensa emocional imediata.
Canclini (consumidores-cidadãos): seguir um perfil é pertencer. A fidelidade nasce menos da checagem e mais do reconhecimento de tribo.
Bourdieu (campo jornalístico): a TV ainda empresta prestígio, mas a régua é o engajamento. Quem performa conflito, intimidade e opinião em ritmo de feed leva vantagem sobre a mediação lenta.
Gramsci (hegemonia): a direita ocupou aparelhos privados de hegemonia (canais, podcasts, igrejas digitais, páginas de celebridades) e satura o senso comum com os mesmos frames.
Debord (espetáculo): a política vira série, heróis, vilões, cliffhangers. O feed oferece a dramaturgia diária e pede reação instantânea.
Consequências:
Personalização da esfera pública: a agenda gira em torno de perfis, não de instituições.
Infotenimento como norma: o interesse público passa pelo carisma antes da verificação.
Ciclo curto da indignação: mais calor, menos luz. A pauta muda antes de maturação.
Moral da história: não é só quem fala, é como, onde e com que máquina fala. Enquanto o centro da conversa for decidido por métricas de plataforma, vence quem melhor produz indignação comestível. O desafio para jornalismo, universidade e política democrática é disputar linguagem e infraestrutura, ou o feed seguirá transformando tudo em torcida conservadora.
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