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A queda do céu
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

A queda do céu

Ou: quando os deuses perdem a paciência.
Tipo Opinião
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Vina foi expulso aos 3 minutos do jogo contra o Internacional após forte entrada no volante Luis Otávio (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Vina foi expulso aos 3 minutos do jogo contra o Internacional após forte entrada no volante Luis Otávio

O futebol apareceu muito cedo na minha vida. Lembro-me de, aos sete anos, subir as escadarias do Presidente Vargas pela mão firme do "seu Edgar", meu pai, torcedor apaixonado do Ceará, e sentávamos perto das cabines de rádio e ouvíamos, ao vivo, a voz rouca do espectral Paulino Rocha. Desde então, penso no Ceará, seus jogos, seus times, seus ídolos e treinadores, como parte da minha biografia afetiva.

 Hoje, décadas depois daquele tempo do menino na arquibancada, a mesma cidade vive um luto coletivo. Em 7 de dezembro de 2025, Ceará e Fortaleza caíram juntos para a Série B de 2026, rebaixados na última rodada, empurrados para o abismo por derrotas dramáticas e combinações cruéis de resultados. É a primeira vez em mais de três décadas que os dois grandes rivais descem juntos. Por isso, a sensação de tragédia ultrapassa o placar e atravessa o estado inteiro.

É natural procurar culpados imediatos: o técnico que errou, o jogador que falhou, o dirigente que planejou mal, o árbitro que "roubou". Mas talvez o rebaixamento simultâneo diga algo mais profundo sobre o lugar do futebol na nossa vida coletiva, sobre o tipo de clube que construímos no Ceará e sobre o projeto que imaginamos para nossas camisas, nossas torcidas e nossa autoimagem como povo. Quero sugerir três chaves de leitura para esse luto: o futebol como entretenimento, como esporte de alta competição e o time como marca comunitária.

Quando um time cai, não desce apenas um elenco de 25 jogadores: desce a autoestima de bairros, cidades, às vezes de um estado inteiro. Arlei Damo mostrou como clubes e torcidas são dispositivos de identidade social: rivalidades, pertenças, humilhações e glórias ajudam as pessoas a organizar a experiência de classe, de território, de nação. No caso do Fortaleza, a queda vem após um ciclo de afirmação nacional e continental, com Libertadores e campanhas que pareciam consolidar um "projeto" acima da média brasileira. Já o Ceará vive o pesadelo de quem festejou o retorno à elite (num bambo, é verdade) e, em um ano, viu a festa virar trauma.

Aceitemos um fato incômodo: na economia contemporânea, futebol é também uma indústria global de entretenimento. Isso não significa reduzir o torcedor a "cliente", mas entender que o jogo é show, experiência, narrativa. Nos últimos anos, Ceará e Fortaleza avançaram nessa direção: estádios modernizados, sócio-torcedor, redes sociais bem trabalhadas e ações de marketing. O rebaixamento, porém, expõe o limite: quando o produto central, o futebol em campo, se deteriora, todo o castelo de entretenimento desaba. A experiência vira pagar caro em ingressos, camisas e pacotes de TV para ver um time desorganizado, apático, previsível como foi o Ceará nos últimos cinco jogos. Pensar o futebol como entretenimento, nesse luto, é perguntar que tipo de espetáculo estamos entregando: não apenas em vitórias, mas em identidade de jogo, intensidade, coragem tática.

Se o futebol é entretenimento, é também, e cada vez mais, alta competição: ciência aplicada ao corpo, à mente e à gestão. Avaliação física e de desempenho, análise de dados, scouting, psicologia esportiva, nutrição, planejamento de elenco, coerência entre ideia de jogo e contratações - tudo isso faz parte da engrenagem. Boa vontade, camisa pesada e "raça" já não bastam. O rebaixamento conjunto sugere, por caminhos diferentes, um colapso de projeto: temporadas marcadas por apostas de curto prazo, erros acumulados de contratação, técnicos sem avaliações precisas, elencos mal motivados, incapazes de suportar a pressão decisiva (aquele jogo contra o Inter, a jogada do Vina, tudo é um retrato do conjunto falho… Não foi azar, nem apenas uma jogada abrupta numa noite infeliz. Foi a conta de escolhas ruins). Nem SAF, nem "associação à moda antiga" são, sozinhas, garantia de sucesso: sem projeto esportivo consistente, qualquer modelo jurídico/administrativo vira fachada. Pode prestar atenção: quando a coisa funciona, é muito mais pelo bom senso e talento de um grande dirigente (penso em Elias Bachá, Franzé, Evandro, no Ceará).

Há ainda uma terceira dimensão, sem a qual as duas anteriores perdem sentido: o clube como marca comunitária. Barcelona, Atlético de Madrid, Athletic Bilbao ou Borussia Dortmund mostram que é possível se internacionalizar sem romper o vínculo com o território, o sotaque e os dramas locais. Claudio Rigo e outros pesquisadores do Barcelona mostraram como o lema "més que un club" foi sendo trabalhado não só como slogan político catalão, mas como uma marca global capaz de vender uma experiência de pertencimento ao mundo inteiro. Suas "missões" falam de representar um povo, uma língua, uma região, não apenas de "ganhar títulos" ou "maximizar receitas". Ceará e Fortaleza sempre foram isso: marcas comunitárias. É impossível separar o Ceará das memórias do PV, das romarias ao Castelão, da cultura de rádio, dos narradores que transformavam o domingo em liturgia laica. É impossível separar o Fortaleza das cores espalhadas pela cidade, dos bares que ostentam o escudo, das famílias divididas entre tricolores e alvinegros.

Nos últimos anos, parte dessa dimensão foi capturada por uma linguagem empresarial empobrecida: "gestão profissional", "case de sucesso", "produto Série A". Profissionalizar é necessário. Mas, quando o clube passa a falar com sua gente apenas numa lógica de engajamento e monetização, algo se rompe. O torcedor continua amando, mas passa a desconfiar. O rebaixamento escancara essa fissura: a empresa falhou em entregar o "produto" prometido, a comunidade se sente traída e o clube arrisca virar só mais uma corporação desacreditada vendendo nostalgia em camiseta retrô.

O que fazer com esse luto? Primeiro, recolocar o torcedor no centro, não como cliente, mas como sujeito político do clube. Transparência radical sobre dívidas, contratos e critérios de decisão. Participação real em conselhos, assembleias, eleições. Reconhecimento de que o clube pertence a uma comunidade de longa duração, não a uma diretoria de passagem. Segundo, assumir o futebol como campo de conhecimento: criar centros de inteligência esportiva, com profissionais qualificados e autonomia para planejar a médio prazo, blindados de humores imediatistas de redes sociais e disputas internas. Terceiro, repensar a narrativa da marca comunitária: em vez de imitar slogans e marcas genéricas de "Vovô,"Lion", assumir de forma consciente as singularidades cearenses: o humor, a irreverência, a capacidade de criar a partir da escassez e perguntar, em voz alta: o que significa, hoje, ser um clube de parte importante do povo do estado do Ceará?

O título desta coluna é o nome de um livro de Davi Kopenawa, "A queda do céu". Para o pensador yanomami, não se trata apenas de metáfora bonita: é o nome de um colapso real, cósmico e político, que acontece quando o "povo da mercadoria" destrói a floresta, desrespeita os espíritos e rompe o equilíbrio que sustenta o mundo. Ao tomar essa imagem para pensar a queda de Ceará e Fortaleza, não estou igualando tragédia ecológica e rebaixamento esportivo. Estou dizendo que, também no futebol, o "céu" cai quando entregamos o destino do que é nosso à lógica dos outros: dirigentes sem projeto, modelos importados, salvadores da pátria, promessas de dinheiro rápido de empresários reacionários que descolam o clube da sua base social.

Em Kopenawa, o mundo só continua de pé quando os xapiri dançam. No nosso caso, o "céu" só volta a se erguer quando somos nós - torcedores, comunidades, profissionais sérios - que assumimos o trabalho de reconstruir, em vez de esperar que alguém desça do céu para fazer por nós. Talvez a Série B de 2026 seja menos castigo e mais laboratório: duro, caro, angustiante, mas de reinvenção. Entre o menino que subia as escadas do PV pela mão do pai e o torcedor/pesquisador por hobbie que hoje lê estatísticas, balanços e análises táticas, há um fio contínuo: a convicção de que o futebol é uma das formas mais poderosas de imaginar uma comunidade. O luto dói, mas também pode ser o momento de decidir que tipo de céu queremos reconstruir para os nossos clubes.

 

Foto do Paulo Linhares

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