Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
"Mentiras sinceras me interessam. Me interessam. Migalhas dormidas do teu pão. Raspas e restos me interessam" (Cazuza).
Eu tenho uma fraqueza antiga: é meu vício por livros noir. Gosto que me enrosco desse ponto de vista meio sujo, meio político e existencial, em que o narrador sabe demais e apanha por isso, em que a cidade é um personagem, e a investigação é sempre uma autópsia social. Talvez por isso eu tenha recebido "Verdade Oculta" (Disney ) como quem reencontra uma história familiar: ali está o jornalista-detetive, aquele tipo híbrido que não se contenta em "contar o fato" e acaba indo atrás do que o fato esconde.
E, sim: eu tenho uma razão íntima para essa identificação. Estou escrevendo uma trilogia. Terminei o primeiro volume, "Adeus Praia de Iracema", e meu protagonista, Claude Lins e Silva (brincadeira assumida com Lévi-Strauss), é justamente isso: detetive/jornalista/antropólogo, um sujeito que investiga como quem faz etnografia do poder e das pequenas violências e mentiras sinceras, cotidianas e grandes mentiras estruturais das elites. Sim, os grandes esquemas de poder produzem miríades de pequenas mentiras quase sinceras, como diria Cazuza. E essa é a sacada do noir. Quando eu encontro uma série que entende essa mistura, eu sinto que ela me "pega pelas bitacas" e diz: "Vem cá, é por aqui".
"Verdade Oculta" faz isso com uma qualidade rara: ela entende que o detetive-jornalista não é um herói clássico, e sim um homem em oscilação permanente entre o fracasso e a obstinação. O protagonista Lee Raybon (Ethan Hawke) vive tropeçando: perde o timing, erra o cálculo, se queima, é ridicularizado, volta para casa derrotado. Mas é aí que está a alma do noir, ele reaparece no dia seguinte com a mesma teimosia de sempre, como se a vergonha virasse combustível. A série transforma essa alternância num motor narrativo: a investigação avança não porque ele é invencível, mas porque ele é incapaz de desistir.
O criador Sterlin Harjo coloca esse anti-herói num cenário poeirento e politicamente carregado: Tulsa, Oklahoma, e uma família poderosa (os Washberg) no centro de uma teia de corrupção, violência casual e mortes mal explicadas. Harjo vem de uma tradição e de uma história que não deixam a cidade mentir: ele é Muscogee Creek (povo ligado à fundação de Tulsa) e faz questão de lembrar que Oklahoma também é a terra da Trilha das Lágrimas e de um passado "bem enterrado" que insiste em voltar. O massacre de indígenas e negros.
É aí que a série ganha o seu ponto político mais duro (e, para mim, mais atual): "Verdade Oculta" encena uma América construída sobre traumas raciais que o discurso oficial tenta varrer para debaixo do tapete. O próprio Harjo afirma que o massacre racial de 1921 em Tulsa - quando centenas de moradores negros foram mortos por turbas brancas - aparece como referência direta na série. O noir, quando é grande, não é só "quem matou?": é "quem manda?", "quem lucra?", "quem apaga a memória?". E essa pergunta, hoje, é uma linha reta até a América que desemboca em Trump: a nostalgia supremacista, a violência como método, o ressentimento como política.
No meio disso tudo, há um detalhe delicioso e muito noir: os rastros do mistério passam por uma coleção de romances de Jim Thompson, que funciona quase como código secreto. Thompson é o santo profano desse universo: um escritor americano de pulp e crime, conhecido por narradores "aparentemente normais" que vão revelando, aos poucos, uma psicopatia e uma crueldade subterrâneas. O casamento entre a Oklahoma do enredo e Thompson não é gratuito: ele nasceu no próprio estado (em Anadarko) e escreveu como quem conhece por dentro a hipocrisia de cidade pequena, o racismo cotidiano, o poder local, tudo aquilo que, em certas horas, vira religião política.
E então chegamos ao que, em uma coluna passada, eu chamei de "milagre do elenco". Ethan Hawke está brilhante, para variar, como Lee Raybon, e a série foi escrita para explorar essa inteligência inquieta: um homem bagunçado, às vezes patético, às vezes heroico, sempre caminhando na corda bamba entre se perder e se recompor. Mas o achado emocional é a relação com a filha: Ryan Kiera Armstrong, como Francis, dá à série um eixo afetivo que impede o noir de virar pose. Em muitos momentos, é justamente ela que ilumina o subtexto: por trás do jornalista que apanha da vida, há um pai tentando não fracassar de vez, e talvez seja esse esforço imperfeito que nos prende tanto.
Confesso: o final me incomoda um pouco, por uma espécie de "felicidade possível" que o noir, por natureza, costuma recusar. Mas talvez esse incômodo seja também um sintoma do nosso tempo. Nós, que ainda acreditamos (teimosamente) na democracia, já vimos aqui mesmo a ascensão de políticos que chegaram com a força da mudança, prometendo virar a chave do jogo: Maria, Ciro, Cid, Roberto. A esperança é um motor; a frustração também. E o noir vive exatamente desse atrito.
No fim, quando "Verdade Oculta" fecha suas últimas cenas e o jornalista/detetive reafirma, do jeito dele, que a verdade é briga de rua, eu entendo por que críticos colocaram a série no topo das listas do ano. Para mim, fica o veredito de leitura de policial cult: é a melhor série do ano justamente porque não trata Tulsa como cenário, mas como documento (como faço com Fortaleza, o terceiro livro da minha trilogia é justamente "É tudo mentira, Orson Welles" onde conto uma investigação que tenta descobrir o paradeiro de um cinegrafista de Welles que realmente desapareceu em Fortaleza, copiadores, usem a ideia), e faz do fracasso um método, e da obstinação uma ética.
Ave rara
A academia e o campo cultural gostam de parecer lugares civilizados, menos competitivos, menos agressivos. Só que não. Bourdieu já explicou: são justamente esses os territórios onde a disputa simbólica se refina - e, por isso mesmo, pode ficar mais dura.
Por isso, chama atenção quando alguém atravessa esses campos sem perder o prumo. Pablo Manyé, artista plástico, professor, curador e crítico de arte, ex-presidente da Fundação Art and Life e docente da Universidade Estadual do Ceará (Uece), é desse tipo raro. Sereno nas horas fáceis, sereno nas horas difíceis.
Ele assume agora a presidência da Câmara de Arte e Cultura da Uece, recriada pelo reitor Hidelbrando Soares. Na prática, a universidade ganha um articulador de projetos e um homem de linguagem: alguém que sabe que cultura também é método, e que método também é cuidado e delicadeza.
Tenho certeza de que Pablo fará da palavra, sua prosa refinada e translúcida, uma salvaguarda contra o jogo bruto da nossa terra bárbara.
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