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Literatura em 2025: os melhores do ano no Ceará e Nordeste
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Literatura em 2025: os melhores do ano no Ceará e Nordeste

Entre romance, poesia e biografia, uma seleção dos melhores livros lançados em 2025
Tipo Opinião
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Autora cearense e cronista do O POVO, Marília Lovatel é finalista do 10º Prêmio Kindle de Literatura. (Foto Joao Filho Tavares O Povo) (Foto: João Filho Tavares)
Foto: João Filho Tavares Autora cearense e cronista do O POVO, Marília Lovatel é finalista do 10º Prêmio Kindle de Literatura. (Foto Joao Filho Tavares O Povo)

Minha seleção dos melhores livros do ano no Ceará precisa ser lida como sintoma: ela nasce de um campo cultural que ainda tem dificuldade de dotar seus bens de eficácia simbólica. Isto é, de fazer com que obras importantes deixem de ser apenas "boas" (para meia dúzia) e passem a valer socialmente: circular, ser debatidas, criar público, formar repertório, entrar na conversa nacional sem pedir licença.

Por "eficácia simbólica", eu entendo o seguinte: um livro só "acontece" plenamente quando encontra instâncias de consagração e mediação (crítica, jornal, escola, universidade, clubes de leitura, livrarias ativas, curadoria séria, leitores organizados) capazes de transformar qualidade literária em reconhecimento público, e reconhecimento em continuidade.

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Sem esse circuito, a obra vira acontecimento episódico: um lançamento, duas fotos, um post e o silêncio. É assim que um campo periférico se condena à intermitência: produz, mas não faz valer sua força simbólica.

Com isso em mente, eu fico com estes eixos.

 

UFC completa 70 anos em 2024 com programação especial
UFC completa 70 anos em 2024 com programação especial

Instituição e cidade: UFC como personagem e Aldeota como desigualdade exposta

"UFC: Biografia de uma universidade" (Lira Neto) é um livro raro porque toma a universidade como centro de formação do conhecimento e não como lugar de hagiografia.

O ponto forte, para mim, é que ele permite ler a UFC como um campo de forças: formação de elites, promessas republicanas, rivalidades, modernização, disputas internas, vocação pública e a permanente tensão entre "projeto" e "sobrevivência". Biografar uma universidade como a UFC é, no fundo, perguntar: que Ceará e Brasil ela tentou produzir? E que Ceará e Brasil atravessam por dentro?

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No mesmo eixo (cidade classe memória), a reedição de "Aldeota" (Jáder de Carvalho) devolve ao circuito um romance de 1963 que sempre foi mais do que romance: é radiografia social e diagnóstico da Cidade, e, o livro havia virado raridade cara na internet antes de voltar às prateleiras.

Aqui entra a minha crítica: a Editora UFC perdeu uma grande chance. Um livro dessa importância pedia uma edição que ajude as novas gerações a atravessar o tempo: notas explicativas de qualidade, cronologia mínima, glossário de referências, um posfácio que situe Jáder no campo cultural cearense e no Brasil, uma leitura crítica das camadas sociais e da linguagem da época.

Sem esse aparato critico, a reedição cumpre a tarefa comercial e patrimonial mas falha na tarefa pedagógica e pública: justamente a que poderia aumentar a eficácia simbólica do livro hoje.

 

Autora cearense e cronista do O POVO, Marília Lovatel é finalista do 10º Prêmio Kindle de Literatura. (Foto Joao Filho Tavares O Povo)
Autora cearense e cronista do O POVO, Marília Lovatel é finalista do 10º Prêmio Kindle de Literatura. (Foto Joao Filho Tavares O Povo)

Ficção e prosa: coragem, costura, sangue e o melhor romance nordestino do ano

Um dos grandes livros do Ceará este ano, no meu recorte, é "Salvaterra - Breve romance de coragem" (Marília Lovatel).

A história acompanha uma menina no Amazonas que rompe o destino social e familiar imposto às mulheres de sua condição.

O que me interessa é o gesto formal: coragem, aqui, não deveria ser "mensagem" mas condução de narrativa. Coragem como economia de linguagem, como recusa do sentimentalismo fácil, como insistência em conflitos reais. Marília escreve muito bem.

No mesmo nível de atenção, é vejo "Mulheres em ponto cruz" (Irlys Barreira): um livro de contos que funciona como tapeçaria, 25 peças que costuram mulheres verossímeis, contraditórias, ora submissas, ora predatórias, ora santas, ora pecadoras, com uma delicadeza que é também dureza.

O mérito, para mim, é que Irlys não escreve "sobre" mulheres como tema. Ela constrói um método de olhar para a micropolítica dos gestos, aquele lugar onde a desigualdade vira costume e onde, às vezes, uma liberdade mínima aparece como fissura.

E, olhando para além do Ceará, eu chamo de melhor romance nordestino do ano (pela potência literária e pela síntese de experiência contemporânea) "Horas azuis" (Bruna Dantas Lobato). O livro tem uma linha simples e devastadora: a filha, diante da tela, que está nos Estados Unidos fazendo um doutorado, conversa todos os dias com a mãe que ficou no Rio Grande do Norte e faz um romance sobre distância, afeto, idioma, vida acadêmica, construção de destino.

O que torna "Horas azuis" exemplar é que ele não "representa o Nordeste": ele mostra como o Nordeste se inscreve no mundo quando a vida se desloca, e como mãe e filha viram o lugar onde a identidade resiste.

 

Academia com potência de debate público

"Os jesuítas e a educação moderna - a escrita de si no corpo historiado dos indígenas" (Maria Juraci Maia Cavalcante, Editora UFC) entra aqui como livro que merece escapar do nicho.

É um livro que discute a formação de elites, escolarização, disciplinamento e projeto civilizatório e, sobretudo, para lembrar que "educação" não é neutra: é sempre disputa de corpo, linguagem e autoridade.

 

Imagem, arte e política: a luta contra a indiferença e a política do olhar

"Habitantes" (Celso Oliveira) é livro que afirma uma fotografia documental de longo curso: mais de 60 imagens atravessando Ceará, Nordeste e América Latina, com textos críticos e jornalísticos ampliando o debate sobre pertencimento cultural.

Aqui, documento não é "registro": é posição. Quem aparece, como aparece, e o que a imagem deixa fora são decisões políticas do olhar.

E "Ataque à indiferença: ensaios sobre arte e política" (Moacir dos Anjos), livro do curador pernambucano, assume sem rodeio o mote das "práticas artísticas que são, também, práticas políticas".

Eu gosto dessa escolha porque ela combate uma doença muito brasileira: transformar arte em ornamento e política em ruído. Moacir tenta devolver à arte a capacidade de produzir desconforto, isto é, pensar a aldeia e o mundo criticamente.

 

Capa do livro 'Pele, papel & pulso
Capa do livro 'Pele, papel & pulso", de Ednardo

Música e tradução: memória viva e circuitos de consagração

"Ednardo - Papel, Pele & Pulso" (Ednardo) é o livro-objeto de um multi-artista: música, artes visuais, arquivo pessoal, cinco décadas de trajetória, com edição de 2025 e circulação pública no Ceará.

A força está na recusa de reduzir Ednardo ao "cantor": é um livro que disputa a memória como autoria expandida.

Se eu tiver de resumir a escolha numa tese: esta lista não é só uma lista. É um diagnóstico.

Temos obras com potência do Brasil, mas o campo ainda falha em transformar potência em valor público contínuo. O que falta, e aqui eu volto ao começo, é eficácia simbólica: crítica regular, edições bem pensadas (com aparato quando necessário), imprensa com coragem de criticar e hierarquizar, e instituições culturais que queiram formar leitores, não apenas "fazer é-ventos".

 

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