Logo O POVO+
Cidadezinhas
Foto de Pedro Salgueiro
clique para exibir bio do colunista

Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Cidadezinhas

Saí de minha pequenina cidade para estudar em Fortaleza (pois a maioria das escolas do interior não tinha 2º Grau ainda) em dezembro de 1979. De lá para cá se passaram quatro décadas, mas esses 15 anos iniciais de vida permanecem na memória de maneira mais nítida que os 40 seguintes; podemos tentar explicar esse mistério usando vários raciocínios, quase todos falhos, inconclusos, imperfeitos... De modo que os reles acontecimentos destes primeiros anos estão cada vez mais presentes em meus pensamentos conscientes ou inconscientes, lembranças e sonhos que muitas vezes se mesclam sem possibilidades de separação.

E a maioria desses sonhos (alguns beiram o pesadelo) é de uma nitidez que me impressiona, detalhes saltam dos locais que percorri, estradas que andei na infância, especialmente uma que vai da sede para o lugarejo de meus antepassados paternos, Riacho do Gado, também veredas que levavam deste aos outros recantos próximos, Barra da Oiticica, Barra do Convento, Carão, ou ali pertinho nos Torres, comunidade de negros trabalhadores, que ainda hoje sobrevive por lá (madrugada dessas sonhei saindo pelos caminhos numa noite de breu junto com um primo, rumo aos Torres, para procurar vagalumes - era inverno, o coaxar dos sapos nas poças nos acompanhava nessa pequena aventura -, quando deixamos a estrada de barro e adentramos as veredas, descobrindo terreiros alheios, onde conversas se misturavam com cantos de grilos e pios de aves noturnas; e foi numa dessas escapadas que vislumbramos dois ou três luminosos vagalumes, dos grandes, apertamos os vidrinhos de injeção que guardávamos no bolso sempre para aprisionar os cabeças de luz... Meu primo, por ter nascido e se criado no mato, disparou na frente com facilidade e agarrou no ar a pequenina tocha. Bem lá de trás ouvi o grito, "que é isso, caboclo!?" - ele tinha derrubado o cigarrão de fumo Arapiraca de um dos homens que pitava no escuro do terraço... O primo devolveu o grito e voltou em disparada, passando por mim, que ainda tateava de volta à estrada que nos levava pra casa. Depois do susto rimos muito, e mesmo depois de crescidos costumávamos rir do nada com a lembrança, deixando os outros primos sem nada entender).

Pois não é que a cena me veio inteirinha - com detalhes que eu já havia esquecido, talvez acrescidos com outros que a imaginação foi sedimentando na memória desde a infância - noite dessas num sonho. Acordei assustado, num misto de alegria e tristeza, então reorganizei o que lembrava, muito pouco!, junto com o que o sonho me havia recordado; depois fiz um balanço, mas assustado ainda com essa imensa "caixa-preta" que temos escondida em nós, e relembrei o primo, alourado, afobadinho e que ficava gago se sentisse raiva; outras recordações me vieram a reboque destas presenteadas pelo sonho, até que finalmente lembrei que desde essa época da infância não revia o tal primo, que ganhou o mundo atrás da sobrevivência (principalmente fugindo do pesadelo de ter visto o assassinato do pai), virou aventureiro percorrendo o Brasil e, notícias tivemos, até o Paraguai.

E esses dias de exílio na também pequenina Fortim me têm trazido saudades daquela outra cidadezinha de minha infância, por uma associação que racionalmente nem tento explicar: os pequenos dramas domésticos vêm à tona, minha mãe assando bruacas, meu pai batendo enxada num trilho, os galos cantando às vezes até de tarde, chocalhos de vacas ao nascer do dia, os grilos insistentes na goiabeira, os cachorros ecoando em quintais madrugadas afora, e principalmente os pássaros que (mesmo de espécies diferentes das nossas lá do Sertão) ditam os sons que, aqui e lá, me embalam o dia.

Foto do Pedro Salgueiro

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?