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Que seria
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Que seria

Tipo Crônica

O que seria de nós (e de nossa sanidade) durante essa pandemia se não fossem as diversas arte&manhas (não faço aqui a devida discussão se foram boas ou más as que invadiram nossos lares e sentidos, nem se sempre desejadas); para alguns seria o fim se não pudessem recorrer às suas músicas preferidas, e até às ocasionais que por ventura "pintaram" em tantas e forçadas "lives"; conheço vários que acalmaram os nervos desenhando, pintando, e até se descobriram com jeito pra "coisa", como crianças que descobrem a serventia das paredes de casa devidamente municiadas (para desespero dos pais) com seus pincéis da escola; há os que cantaram ao violão ou timidamente no banheiro, e até quem assovia velhas canções puxadas da memória nesses dias sem fim; já outros, feito eu e uma corriola de amigos, não passariam - certeza absolutíssima! - sem os bons e velhos livros de sempre.

Nunca percorri tanto as prateleiras empilhadas de volumes que preenchem quase todas as paredes de casa, nunquinha sujei tanto as mãos de poeira, nem enchi tanto narinas e pulmões de ácaros como nesses cinco meses de reclusão forçada. Revi obras que nem imaginava mais ter, perdidas que restavam na confusão de gêneros e nacionalidades que tentam (inutilmente) pôr ordem na imensa desordem que reina em cada biblioteca particular que se preze. Desse caos de poeira e papeis amarelecidos, para minha alegria e espanto, ressurgiu um de meus livros preferidos, "Longe, e Há muito tempo", do escritor, naturalista e ornitólogo argentino William Henry Hudson, numa edição de capa dura da Editora Brasileira, de 1952, que sumira de meu convívio fazia mais de dez anos, aliás, este volume já se escafedera de minhas estantes bem antes disso, mas quando cansei de procurá-lo recorri à Estante Virtual e comprei novo exemplar, o que fez com que alguns anos depois dessa desistência e desse pedido o volume antigo, como se estivesse enciumado ou saudoso, reapareceu do nada e passou a fazer companhia ao novato, agora nessa assassina folga forçada reencontrei os dois, que agora deixo em canto visível e bem iluminado para que não façam novas traquinagens.

Além de procurar livros extraviados pelos labirintos da casa, adquiri a perversa mania de começar e não terminar vários romances (com livros de contos e de poesias já faço isso há décadas) ao mesmo tempo, como se com essas lições de ansiedades pudesse pular etapas, domar o perverso tempo que vai nos consumindo. A impaciência tomou conta de meu cérebro (já não tão normal antes da pandemia), fiquei (ficava, fico) pulando de um autor para outro, com imensa insatisfação e o terrível tédio que transferi da situação vivida para meus antigos parceiros de solidão. No ócio do calabouço me flagrava conversando com os autores, fazendo questionamentos os mais estapafúrdios possíveis, comparando leituras: se lia (de Zambra) "No final, ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele tenha ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura:" tinha certeza que ele (o autor chileno) estava refletindo Paul Auster "Mesmo antes de sua morte, ele estivera ausente, e desde muito tempo as pessoas mais próximas a ele aprenderam a aceitar sua ausência..." falando de seu pai.

E - quando essas coisas acontecem com um sujeito confuso e irremediavelmente solitário - só resta a ele conseguir um bom pangaré e um fiel escudeiro e sair pelo meio do mundo, montado nos dois, desafiando Moinhos de Ventos e outros monstros invisíveis.

Foto do Pedro Salgueiro

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