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A procissão do Senhor Morto
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

A procissão do Senhor Morto

Tipo Crônica

...ninguém dirige aquele

que Deus extravia!

Raduan Nassar

O Senhor Morto ainda não havia dobrado a esquina da farmácia, pois (em respeito à prolongada e misteriosa convalescência do maior doador da paróquia) demorava-se nas louvações em frente à janela do coronel Zé Jorge. Dona Zulmira erguia as mãos para o céu, repetindo o ritual de sempre (com o canto do olho colhia satisfeita o sorriso de aprovação do padre Heládio). Os galhos de flamboyant foram colocados em posição que propiciasse a demora. O meio da rua completamente forrado com as folhas e flores que o sacristão e os mais devotos providenciavam desde a madrugada.

E foi logo de manhãzinha, quando o magricela teve a triste ideia de largar sua tarefa de jogar rosas pelas calçadas para se dirigir ao balcão do boteco Riso da Noite, que a desavença aconteceu. Ele entrou implorando licença e limpou o suor do rosto, depois olhou tímido para o proprietário e pediu um refresco. A gargalhada foi geral, uns riram por gosto, outros para agradar os parceiros. Negro Nilson se destacou dos camaradas e pegou o magrinho pela gola, enfiou-lhe a mão aberta no rosto, olhando de soslaio para os companheiros. Depois que o devoto bebeu meia garrafa de aguardente e levou alguns safanões, foi atirado no meio da rua.

O cortejo havia acabado de passar pelo mercado e contornava a esquina da farmácia. Os frequentadores do boteco saíam para a calçada e se misturavam com a multidão, perdendo-se entre os devotos — os olhos fixos no corpo estendido sobre a cruz, as narinas invadidas pelo cheiro de velas queimadas e o adocicado das flores murchas. Os mais firmes arriscavam alguns passos atrás da procissão, logo desistiam e cambaleavam de volta aos seus copos; aqueles menos bêbados se escoravam nas paredes e no tronco de um benjamim, acompanhando com os olhos tristes o féretro.

Os fiéis desciam já o alto da matriz, as velas tremelicando na direção do cemitério. No riso restou apenas o silêncio. Em todos um certo clima de paz e medo, os olhos perdidos no infinito. Menos o negro Nilson, que jazia imóvel, debruçado sobre a janela, com os olhos arregalados e a boca aberta buscando desesperada o ar — as mãos cheias segurando as vísceras.

Bem longe o cortejo descia vagarosamente a Rua da Saudade, um dos braços do andor vazio, o Senhor Morto ligeiramente inclinado para a direita. A procissão maior levava o Senhor à igreja; outra, bem menor, carregava o negro Nilson na direção oposta.

Foto do Pedro Salgueiro

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