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O cronista com excesso de assunto... e de preguiça
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

O cronista com excesso de assunto... e de preguiça

Tipo Crônica

Todo cronista que se preze, até um projeto mal enjambrado feito eu, tem seus dias de falta de assunto; desde o genial e mestre de todos os nossos cronistas, Rubem Braga, passando pelos mais reles escrevinhadores de província, fizeram e fazem da falta de assunto o assunto do dia. O mestre de Cachoeiro do Itapemirim (Ah, saudoso Braga, como fazes falta...) fez uma genial página sobre o assunto, outra reclamando porque uma leitora protestou pelo fato de ele ter repetido um belo texto num dia de pouca imaginação; sapecou que era uma injustiça, já que uma música era tão mais valorizada quanto mais fosse repetida, já o cronista... Realmente: Uma injustiça!

Pois bem, venho nestas linhas reclamar, confessar, lamuriar, que estou tendo sérias dificuldades justamente pelo excesso de assunto. Aliás, nossa pobre rica sociedade tem seus maiores pecados pelo excesso de tudo: excesso de alegria geralmente não acaba bem, vejam nossos perigosíssimos estádios de futebol, nossas casas de shows, nossas festas religiosas. Onde tem excesso de gente, tem excesso de problemas. Excesso de tristeza, então, nem se fala. A grande quantidade de carros tem deixado nossas vias impraticáveis, estupidamente inviáveis. O crescimento dos parques industriais e da produção de carne tem destruído nossa frágil farta natureza. Enfim, apesar da falta de alimentos e chuvas que assolam nossa ressequida terrinha nordestina, tenho bem mais medo do excesso que da escassez.

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Talvez por isso eu seja um carinha comedido, com exceção da comida e da bebida, sem riquezas, sem muitos amigos (raríssimos e tristes inimigos), de poucas alegrias e quase nenhuma ira. Não possuo carro, mas peco pelo excesso de livros, tenho aos poucos os doado pra me livrar do fardo. Devagarinho fui descobrindo que quanto mais se tem livros menos se lê (seria por esse motivo que raríssimos bibliófilos foram ou sejam cultos?)... Acho que exatamente pelo problema do excesso: não se sabe qual escolher, mal se começa um já se quer passar pra outro... Cismei de botar uma pequena estante isolada no quarto, pouquíssimos livros, resultado: mais leitura, tem-se o domínio de limites... A velha história da construção da Muralha da China: dividiram em muitos pedaços para que não viesse o desânimo do excesso, do excesso do que falta ainda. Seria, também, por isso que com o advento da Internet, com a grande quantidade de informações absorvida diariamente, temos mais e mais indivíduos rasos, de pouca ou quase nenhuma verticalidade?

Talvez por isso escreva pouco, curto; gosto dos livros pequenos; desses que falam pouco... daqueles que prometem pouco, dos que são realmente parcos!

Comecei a semana pensando em escrever sobre as mil artimanhas dessa última eleição, seus excessos e faltas. Também sobre a violência que campeia em nossa sonsa loirinha endiabrada pelo sol teria que escrever um romance de mil páginas, tanto é o farto arsenal de casos que se avolumam em rubras páginas policiais escritas e televisivas. Sobre o cotidiano simples e mundano de nossas ruas e bairros tenho um prato farto de velhas novidades. O próprio umbigo, que sempre rendeu aos bons cronistas de todas as épocas uma variação segura de bons assuntos, anda por demais sujo. Cera em demasia, o excesso de pudor interiorano... De tanto assunto, sobrou o vazio da escolha morosa, tardia.

***

Sei que para justificar (pra haver um casamento perfeito entre forma e tema) eu deveria escrever uma imensa crônica, pois o excesso de assunto ajudaria.

Não fosse o irreprimível excesso de preguiça a que me vi acometido neste dia de hoje.

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