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Minhas falsas memórias
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Minhas falsas memórias

Tipo Crônica

Pouca coisa fica na caixa preta da memória (pelo menos vem à tona racionalmente) de tudo o que vivemos durante nossa curta existência, vamos catando cacos dessa vivência e com eles seguimos tentando reconstituir nosso passado, garimpando pérolas entre os cascalhos, num trabalho de Sísifo: a mais remota lembrança de minha infância vem de um alpendre amplo duma casa muito antiga onde moraram meus avós bem antes d'eu nascer, havia algumas paredes de tijolos (sinal de que parte dela tinha sido construída posteriormente) e o restante de taipa... Era bem mais alta na frente e o final da cozinha quase tocando a cabeça dos adultos. Dessa varanda lembro a busca por um pequeno carretel de linhas, já vazio, que me servia de valioso brinquedo. Do carretel a memória já pula para a única vez que visitei minha avó paterna na vizinha cidade de Nova Russa, quando recebi dela um pequeno carretel, que me serviu de companhia nessa viagem de volta e por muito tempo ainda, mas que minha mente não consegue distinguir se foi o mesmo que eu procurava na minha lembrança mais remota.

Recordo de uma imagem bem mais antiga, que somente não substitui essa da procura por esse carretel no alpendre porque, com o tempo, se mostrou falsa, senão falsa porém construída, nela estou numa rede armada nos galhos baixos de uma oiticica enquanto minha mãe e outras mulheres lavam roupas... Conversando com minha mãe, quando ela ainda tinha memória, descobri que tanto poderia ser no sangradouro de um pequeno açude na frente da casa (aí a árvore seria outra) ou, mais provável, numa cacimba nas croas do Riacho do Gado... e de vez em quando ela vinha me amamentar: de tanto ouvir essa história na meninice passei acreditar que era uma lembrança legítima, minha mesmo e não de minha mãe e tias.

De uma grande cheia, no ano de 1974, lembro-me bem de todos os moradores do nosso Alto das Pedrinhas irem para a parte mais alta do bairro, alguns moleques se equilibravam no cocuruto de uma imensa pedra tentando avista as águas que, diziam, já invadiam o mercado de Tamboril... Nos meus dez anos é improvável que nossos pais tenham nos deixado ir além dos limites do bairro: minha mãe ria quando eu afirmava que vira os homens da cidade dentro do rio invadindo a cidade, tomando cachaça e salvando o que boiava dentro das bodegas; ria mais quando eu jurava que vira com esses meus olhos "que a terra há de comer" a imagem mais emblemática dessa enchente: a famosa porca que ficara encalhada no telhado das casinhas ao lado da grota do cemitério.

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Muito tempo depois fui conhecer as "verdadeiras" imagens dessa enchente nos acervos de minha professora Graça Farias, iguaizinhas às que eu juro até hoje ter visto ao vivo, mesmo que todos lá de casa acreditem que não, pois uma criança de nove anos não participa de aventuras tão perigosas estando a quilômetros de distância do evento "concretos"... O mesmo acontece com muitas outras recordações de minha vida, nunca sei se foram memórias vividas, emprestadas por outros ou imaginadas por mim. Sei que fazem igualmente parte de minha história, como a mostrar que de minha vida mesmo pouca coisa se passou de "verdade"... Mas me dizem muito mais que essas lembranças ditas "tangíveis", emprestadas ou imaginadas são as nos constroem por inteiro.

Foto do Pedro Salgueiro

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