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O velho pássaro
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

O velho pássaro

Tipo Crônica

O gasto poeta já tinha mais de sete décadas de andanças pelo mundo, não que se pudesse chamá-lo de um reles vagabundo, pois já trabalhara muito durante a vida, batendo ponto por quase metade desse tempo num banco oficial que depois passou a privado. Talvez essas décadas de sofrimento em meio à burocracia (detalhe: ele nunca falou mal dessa burocracia, embora sempre colocasse um "r" a mais ao lado do outro na sua pronúncia da palavra, o que variava às vezes com a ênfase que dava às duas primeiras sílabas e, após, uma pausa antes das outras duas) o fizesse cada dia mais valorizar sua atual "liberdade" de simples vagante: nunca discutia assuntos áridos, não se metia com política (não que fosse um alienado, não!, era até bem radical em discussões atuais, embora meio deprimido com o momento ridículo do país, mas dizia não mais perder seu tempo em assuntos rasos, preferências partidárias e as atitudes de políticos e correligionários... Mas se quisessem dialogar com ele por uma noite inteira sobre qualquer desses temas "quentes" da moda ele não fugia, o que geralmente não acontecia: o interlocutor desistia geralmente nas primeiras trocas de palavras).

O que nosso antigo poeta gostava mesmo era de chamar algum de seus pouquíssimos amigos para ir almoçar num restaurante à beira de um açude alguns quilômetros distantes da pequena cidade natal, a desculpa quase sempre infundada: queria ouvir o trinado ou duelo em dueto dos casacas-de-couro que fizeram seu ninho espinhento numa algaroba nos arredores da lâmina d'água. Mas gostava da tilápia frita pelo proprietário do estabelecimento, que hoje era seu amigo e informante dos hábitos das aves e animais típicos da região... Isso depois de longo tempo de desconfiança do dono do restaurante, que na sua simplicidade não entendeu muito bem os assuntos "diferentes" do velho poeta e levou mais de um ano para se acostumar com a fala arrastada e baixa, os assuntos sem fim sobre coisas "insignificantes".

Nesse meio de caminho a relação de amizade deles quase azeda, exatamente porque certa vez o poeta, não encontrando os passarinhos cantando no local de sempre, descobriu que o comerciante havia desmanchado o ninho com a justificativa de que os terreiros estavam ficando cheios de espinhos e gravetos: nesse dia trocaram palavras poucas, meio ásperas e, pela primeira vez, não comeu o peixe nem tomou a meia dúzia de cervejas de sempre. A frieza durou seis meses, porém um dia ele voltou como se nada tivesse acontecido, acompanhado de uma amiga professora, igualmente aposentada, que também adorava pássaros e conversas sem fim: almoçaram e dialogaram a tarde inteira, discorreram sobre o vento, a fase da lua, a plantação de coentros e cebolinhas que teimavam em aguar só com água da chuva e outros assuntos... Quando foram saindo o dono do local lhes informou que os casacas de couro construíram seu ninho um pouco além da parede do açude, no que o poeta brilhou os olhos de satisfação e prometeu que viria outro dia para ir lá ouvir de perto.

Mas não deu tempo, o velho poeta acabou pegando um vento encanado e ficando com a boca torta, o lábio dependurado, o braço mole... Soubemos que as filhas dele vieram fazer a mudança de volta para a capital. Também tivemos a notícia de que estava bem, apesar da dificuldade em falar, e continuava acompanhando os pássaros: agora uns pardais errantes que gritam em algazarra no quintal ou raros bem-te-vis que vêm roubar a ração do cachorro.

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Foto do Pedro Salgueiro

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