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Dia de Finados
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Dia de Finados

Tipo Crônica

Como sempre, em novembro, regressei à minha pequenina cidade, conhecida por todo meu corpo até às lágrimas, até o borbulhar do sangue nas veias, até as ínguas que não me desinflamaram desde a infância, até o sarampo que quase me mata e ainda me dói a alma.

Todos vocês que regressam, também, para cá - a este fim de mundo -, nesse comecinho de novembro aproveitem o resto de quentura dos bro-bros, esse mormaço latejante que há muito deixou de ser de fora e espera apenas um sinal desse vento quente da caatinga para ressurgir em nós, cá dentro!, mesmo amenizado pelas noites frias de junho e julho, onde o deserto parece os polos Norte e Sul.

Descubra logo os encantos, quase invisíveis, deste (pois já estou aqui!) pequenino dia dos mortos, onde a gema fumegante do sol se mistura com o funesto breu desde a derradeira curva da Grota da Mijada até a morada protegida de frutos encarnados dos Mandacarus plantados pelo arcanjo São Miguel.

Visitem os amigos e parente (e de longe os inimigos, para se certificar de seus terríveis destinos), vá sorrateiramente às casas de cada ser, mesmo que eles não te possam enxergar: dê alegrias a uns, dê muitos sustos a outros, lhes mostre toda sua magreza de ossos limpíssimos e sorriso perfeito.

Pequena, de corpo e - principalmente! - de alma, Tamboril! Onde não quero morrer, mas ser depositado aqui, depois de cruzar sertões, cortar léguas tiranas que me levaram faz muito tempo pra longe de ti, depois de ir descendo - finalmente! - calmo pelo Alto do Bruto, de onde já devo (depois de olhar de soslaio para a estrada da Lagoa Grande aonde ia, na infância, visitar tia Mocinha e seu marido sanfoneiro) ter há minutos avistado as silhuetas majestosas, eternas, do Bico da Arara e do Feiticeiro, que, confundidos na mesma sombra, irão inevitavelmente desaparecendo enquanto cruzo, calado mas alegre, aliviado seria mais justo!, a ponte sobre o Rio Acaraú.

Depois então saberei (na minha inconsciência de vivo ou morto?) que desta vez já não terei (teremos?) retorno possível.

Aí todas as lembranças se misturarão, passado e presente num corpo só, inseparável... Dolorosamente inseparáveis! Todos os mortos e vivos convivendo numa delicadíssima tarde rumo a essa terrível noite que se avizinha... Noite de primeiro de novembro, quando todos os que foram retornam para visitar e passar um dia com os vivos.

Meu velho avô Chico Inacio procurará, inutilmente, sua velha bodega no mercado, mas não a encontrará, claro!, com suas gastas portas e balcão de madeira de lei, em seu lugar o ranger de ferro de uma gerigonça de alumínio com armação de ferro. Não mais sua mesinha de imburana entalhada, nem as latas de bombons enferrujadas, nem o camburão de querosene, nem os muitos litros de "zinebras" e guaranás champanhe. Lógico que se assustará, tentando retornar ao batente que virou uma rampa, terá entrado na bodega errada? Mas antes que descubra será enxotado por um ventinho que vem vindo da parte interna do mercado...

Nessa ocasião, da temível noite que se avizinha aos finados, muitos pularão de volta para seus lares, onde viverão festejados ou sequer notados, outros tantos seguirão (em sentido oposto) para a noite sem fim do cemitério São Miguel sem jamais se despedirem... Até (uns fingindo, outros não) daqui a mais um ano, quando tudo se misturará, se reorganizará... Se Deus quiser!!!

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