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Lembrar para esquecer
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Lembrar para esquecer

Tipo Crônica

"Assim seguimos adiante, barcos contra a corrente, arrastados sem trégua rumo ao passado"
(F. Scott Fitzgerald, 'O grande Gatsby')

Certa vez ouvi de alguém, ou imaginei ter ouvido (o que seria a mesma coisa, pois passou a ser uma verdade minha, mesmo falsa, incompleta, inventada), que quando somos moços agimos como se estivéssemos na boleia de um caminhão e olhássemos somente para frente, ansiosos como todos os jovens para descobrir o que nos vem adiante (quando recordo essa imagem vejo alguma das muitas viagens que fiz com meus pais, tios, irmãos pelos arredores de nossa cidade, invariavelmente ouvindo as conversas sem sentido, pra nós crianças, dos adultos, quando - talvez para nos distrair e fazer com que participássemos de seus estranhos mundos - então passavam a contar jumentos, cada um ficava com um lado da estrada e valia até apostas altas; dia desses uma amiga citadina contou que fazia isso com sua filha chorona para distraí-la, mas usando postos de combustíveis no lugar de animais); e a frase pretensamente filosófica concluía com uma obviedade rasa que quando somos velhos somente nos interessava o que poderíamos ver pelo retrovisor.

Cheguei nesta fase da vida, porque pouco de hoje me desperta, do futuro interessa quase nada, como se o caminhão da história, ouvida ou imaginada, rumasse lentamente para o abismo do não mais desconhecido da infância mas do mais que esperado da velhice: preferimos (você também?) não olhar pra frente, desviamos a vista desconfiados e tristes para o espelho já empoeirado - e o que vemos quase sempre é um mistério, nunca tão óbvio como seria de se esperar, visto que já posto, definido...

Dia desses numa conversa com uma amiga de infância, ela do nada se lembrou de nossa inocência de quase adolescentes (lamentava fazendo uma comparação com os jovens da mesma idade hoje), quando saíamos nos intervalo das aulas para brincar de quatro-cantos na parte de cima do mausoléu do Parque Brigadeiro Sampaio, que não existe mais; porém, como o diálogo durou pouco, a imagem inocente de vários mocinhos e mocinhas zanzando de um canto a outro como fossem crianças de jardim-de-infância me ficou, também, brincando na memória... Voltava vez por outra entre as tarefas, leituras e conversa do dia.

Como na memória não mandamos fui pulando tal cabra-cega num confuso jogo-da-amarelinha: da ingênua brincadeira que nos deixava suados, quando uns corriam de volta para o colégio, outros escapuliam para a casa de um colega que morava ali perto para beber água em brilhantes canecos de alumínio num pote coberto por rendas, chegávamos quase ao mesmo tempo na sala de aula onde não raro o professor já nos esperava.

Dos mil detalhes da lembrança despertada por uma singela frase trocada com uma amiga agora distante nos tempo e geografia pinçamos alguns fiapos ao acaso, transitam frases soltas, fotos na parede da casa de uma tia, a chamada nominal na sala-de-aula e o sono que já vem vindo, quando inevitavelmente a "realidade" e os devaneios se misturarão em suas mil e duas nuanças mentais.

Já quase dormindo recordei-me - como se para me despedir do longo dia de infinitas rememorações - de uma vila de casinhas de parede-e-meia que existia na frente do tal Parque Histórico Brigadeiro Sampaio de nossas inocentes brincadeiras, e lá estava eu numa das seis moradias brincando com meus primos e vendo, quando passava na porta da cozinha, o mesmo Parque ainda sendo construído: daí a mente exausta me puxou para uma fotografia mostrada, alguns anos atrás, dessa mesma vilinha pela minha ex-professora Graça Farias, quando (escrita atrás da imagem) uma frase indicava que, noutra época, uma daquelas residências era uma antiga escola da cidade - bem onde as recordações de outros se encontravam sem se tocar com as minhas.

Foto do Pedro Salgueiro

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