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1989 Foi um ano bom
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

1989 Foi um ano bom

Estavam fechando a Avenida da Universidade com cadeiras e mesas, num dos muitos protestos daquele ano; logo chegaria a polícia e haveria uma debandada geral, sobrando cassetetes e chutes para os raros e corajosos e mais afoitos
Tipo Crônica

Parafraseando (ao contrário) o escritor ítalo-americano John Fante: "1989 FOI UM ANO BOM?". O jovem poeta fazia faculdade nas Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do Ceará, morava na Reu 125, a famosa Reu Grande da Praça da Gentilândia, e sobrevivia de dar aulas particulares para uma dezena de alunos em diversos bairros de Fortaleza. Sobrevivia a duras penas, digamos sem lamentos, comendo no bendito Restaurante Universitário da UFC (ainda hoje se benze ao passar na calçada daquele templo de salvação dos estudantes pobres) e sobrevivendo nos fins de semana na casa de raros parentes e amigos mais abastados.

Havia feito um concurso do Poder Judiciário (embora fizesse e amasse a Agronomia e quisesse, no fundo, ser professor) e tinha remota esperança de ser chamado, pois estava no cabeçalho da lista de aprovados. O 1989 prometia seu um ano péssimo (como o 1933 do Fante), os alunos rareando, uma ameaça de greve na universidade, os irmãos mais novos vindos do interior tentando estudar, os sacrifícios da mãe viúva para repartir consigo seus parcos proventos; enfim, um ano que se vislumbrava terrível mostrou-se fértil de esperanças com a notícias de que eu poderia assumir o cargo desejado, mas em Recife, não havia vagas para Fortaleza.

Estavam fechando a Avenida da Universidade com cadeiras e mesas, num dos muitos protestos daquele ano; logo chegaria a polícia e haveria uma debandada geral, sobrando cassetetes e chutes para os raros e corajosos e mais afoitos: ele optou por apalpar o bolso da calça e encontrar a única ficha telefônica (ainda hoje o anacrônico aparelho está lá na esquina da avenida, pelo lado de dentro, como uma peça de museu ao ar livre): havia uma opção para Recife, resumiu a atendente, mas viesse até amanhã, pois o prazo se encerraria às 17 horas.

A partir daquele bendito telefonema, bendito e inesperado, o menino do interior que só conhecia o caminho do torrão natal e as veredas para as universidades, teve que aprender à fórceps que o mundo era um pouco maior que Tamboril e o Benfica, que o sacrifício da distância da família e da querida namorada seria inevitável.

O rito de passagem, os preparativos de viagem, foram em ritmo de espanto e melancolia, o garoto era afeito a rotinas e prezava pelo muito que fazia, pelos muitos com quem convivia: a dúvida entre aceitar ou desistir não encontrou ecos nos mais próximos, o absurdo de não fugir da pobreza, de ter que desistir do amor juvenil, pois uma viagem à época para Recife era uma aventura longínqua, de raros retornos, que viagem de avião não era acessível, as de ônibus caras e raras.

O universitário juntou as poucas roupas aproveitáveis, os livros do coração; separou um calhamaço capa dura de Citações, do Paulo Rónai, e trocou num par de sapatos do colega de quarto, que lhe salvou na posse do tribunal, mas não resistiu às terríveis chuvas do Recife em julho e agosto.

O duro e doce exílio de poucos anos daria (dará?) um livro sem exaltações nem lamentações, episódios inexplicáveis e duradouros lhe fazem acordar à noite para tentar entender, de como o acaso de um gesto inexplicável de catar uma ficha telefônica no meio de uma praça-de-guerra estudantil desemboca no destino de um atalho para um canto qualquer do mundo no qual nunca havia sonhado, e de como aquele inesperado passo não teria volta jamais.

Obs: Esta história, o jovem poeta me contou (enquanto esperávamos, fichas telefônicas à mão, nossa vez de ligar para a família) na fila do Posto Telefônico da TELPE no início da Rua do Hospício, em Recife. O ano era 1989, que - convenhamos - foi um bom ano!?

Foto do Pedro Salgueiro

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