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"Um dragão pós-moderno"
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

"Um dragão pós-moderno"

A última vez que o vi estava saindo de casa com a Jamaica a tiracolo, cumprimentei-o e ele me perguntou onde era o "Buraco da Gia", pois estava querendo arranjar uma secretária e lhe deram um endereço, falei que era na Princesa Isabel, vizinho à minha casa, e fomos caminhando devagar
Tipo Crônica

“Eu sou aquele que come as flores do aniversário.”

(JAP)

Na minha “Crônica da Gentilândia”, do livro Fortaleza Voadora, desdigo: “…e o velho dragão Alcides Pinto sobrevoando as copas das árvores, com suas asas negras — quando ele se cansa de resmungar sozinho em sua caverna e sai para assustar os últimos bêbados da Gentilândia”.

À sua casa corriam as mais diversas faunas literárias; escritores de várias idades, ideologias e estéticas, principalmente os mais jovens, que ficavam embevecidos com as atitudes despojadas, estridentes e loquazes do velho poeta.

Sua residência mais famosa foi a da Rua Rodrigues Júnior, casa grande, sempre muito frequentada; ainda hoje muitos contam histórias e causos nem sempre verídicos, muitas fantasias e traquinagens ficaram no anedotário boêmio-intelectual dessa nossa loirinha desmiolada pelo sol, tão pródiga em tipos populares e bodes YoYôs, literários ou não.

Já o conheci na Vila Cordeiro, na Av. Tristão Gonçalves, bem próximo à vilinha em que ainda hoje mora minha mãe. Habitava uma casa conjugada, numa pobreza franciscana mas digna, com sua querida filha Jamaica. Também conheci seu filho Antonin Artaud, um rapaz magro como o pai, porém de temperamento calmo, com uma timidez oposta à tagarelice e exageros do seu progenitor.

Convivi por um bom tempo com o poeta (era meado dos anos 1990), através dele e de suas muitas visitas fiquei sabendo dos subterrâneos de nossa literatura, tão pródiga em fofocas e vaidades. Ali tive um curso intensivo de como transitar, e sair sem arranhões (embora eu não tenha tirado boas notas) da famigerada guerrilha literária e suas disputas por farelos e migalhas.

Um dia me pediu para que organizasse seus contos, que estavam dispersos em um livro, Editor de Insônias (1965), e uma miscelânea, Reflexões, terror, sobrenatural (1984), além de alguns inéditos datilografados em folhas amarelecidas. Em 1997, o Dr. Martins Filho publica a edição de seus contos completos, Editor de Insônias e outros contos, pela Coleção Alagadiço Novo, da UFC.

Depois soube que ele andou criticando umas mínimas palavras que inseri como “Nota do Organizador”, ou sugerindo que eu estava querendo aparecer às suas custas. Nunca passei recibo nem tomei satisfação, apenas me afastei um pouco de seu convívio. Depois disso ele sempre repetia para mim ou para alguns amigos: “Se não fosse você, o livro não teria saído”, no que eu sempre respondia: “Pois não é, poeta. Quem sabe se um dia a gente não tira uma 2ª edição, não é mesmo!?”. No seu último livro tem um poema dedicado a mim (quem sabe ainda resquício de uma consciência pesada) e a Nilto Maciel, a quem levei, depois da volta definitiva deste ao Ceará, à sua casa da Vila Cordeiro e anunciei alto da porta:

“— Poeta, tô aqui com o maior contista do Ceará!”, no que ele perguntou lá de dentro: “— Quem, poeta, o Airton Monte?”, acabando de vestir as calças; caímos na gargalhada.

A última vez que o vi estava saindo de casa com a Jamaica a tiracolo, cumprimentei-o e ele me perguntou onde era o “Buraco da Gia”, pois estava querendo arranjar uma secretária e lhe deram um endereço, falei que era na Princesa Isabel, vizinho à minha casa, e fomos caminhando devagar. Quando chegou perto do beco ele parou, receoso, e disse que só entraria lá se eu fosse com eles, depois puxou uma pequena faca de mesa, dessas de cortar pão, e disse que estava preparado (mas que era bom eu entrar com ele, disse assombrado). Olhei para Jamaica, que também estava rindo, e falei que não tivesse receio que ali só morava gente de bem, e me despedi alegando ainda ir pegar minha filhinha no colégio.

Não tive coragem de ir vê-lo em seu velório na Academia Cearense de Letras. Queria ficar com a lembrança dele vivo, alegre, mentiroso e brincalhão.

E parece que estou vendo aquele sujeito magro (“tão magro que parecia estar sempre de perfil”, como bem disse, em seu A Guerra do Fim do Mundo, Vargas Llosa), com sua gargalhada sempre sincera, dizendo — e apontando pra si mesmo — para os muitos anjinhos (ou demoninhos, tanto faz) que lhe cercam em algazarra:

“— Agora quem manda aqui é este ‘Dragão Pós-Moderno’!”

Foto do Pedro Salgueiro

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