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Sebo do Geraldo
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Sebo do Geraldo

Tipo Crônica

A frase marcante da autobiografia "De amor e trevas", do israelense Amós Oz, me remete sempre aos "sebos" de velhos livros: "Quando eu era pequeno, queria ser um livro quando crescesse. Não escritor de livros, livro mesmo. Gente se pode matar como formigas. Escritores também não são tão difíceis de matar.

Mas livros, mesmo se os destruirmos metodicamente, sempre há chance de sobrar algum, nem que seja apenas um exemplar, a continuar sua vida de prateleira, eterna, discreta e silenciosa em uma estante esquecida de alguma biblioteca remota". Sebos que frequentei pela vida inteira; pois os sebos, a despeito de parecerem "cemitérios de livros", ou "museus de livros", são na verdade "maternidade de livros", pois se não nascem nesses ambientes geralmente caóticos, renascem, voltam para a vida.

Já vi amigo escritor dar chilique por ter encontrado livro seu, devidamente autografado, na prateleira de um sebo, o que nunca entendi, porque fico numa felicidade sincera, pois sei que ali ele começará vida nova, eterna feito Sísifo, nesse vai-e-volta contínuo que as obras fazem entre as ditas livrarias e os sebos.

Para fortalecer meu argumento ao vaidoso amigo escrevinhador, sustento que finalmente o livro dele se tornou um "clássico", e que meu próximo lançamento se dará diretamente numa dessas "maternidades de livros", para encurtar o caminho que ele naturalmente fará.

Um desses templos sagrados dedicados aos livros, que frequento há mais de duas décadas, funciona numa casa verde forte na rua 24 de Maio, em pleno Centro de Fortaleza, numa área aparentemente inóspita às "coisas da cultura", de comércios variados, desde bares e restaurantes frequentados por trabalhadores da região a lojas de ventiladores, paradas de ônibus e consertos vários.

Quem entrava na porta larga era recebido pelo sorriso cativante do senhor Geraldo, que acompanhado pela sua fiel escudeira, a cunhada e funcionária Estela, deixava o freguês à vontade para se perder nos muitos corredores entulhados de livros, numa aparente desorganização que assusta; digo aparente porque quem ia (vai) conhecendo descobre que existe uma ótima organização no meio do caos: cada assunto na sua vereda, cada livro na sua estrada, nesse imenso sertão de livros.

Apesar da amizade longa com o proprietário, de já o considerar um amigo próximo, nunca troquei uma palavra sobre livros com ele, que seu Geraldo era de outra natureza, dos homens da vida e que adorava falar sobre a vida; queria vê-lo feliz perguntasse sobre como ele começou essa longa aventura com os livros, ele marejava os olhos contando que "comecei mesmo foi na pedra, os livros poucos e espalhados na calçada, era ali perto dos correios, depois da Praça do Ferreira", daí invariavelmente descambava a falar das coisas que passava na época, onde guardava os parcos exemplares, até conseguir comprar uma banca de revista, onde passou a funcionar.

Nesse tempo todo de rápidas e entrecortadas conversas atrapalhada por fregueses, fiquei sabendo não só dos livros e sua vigem longa da "pedra" até aquela loja grande abarrotada de revistas, discos e principalmente de livros, mas de detalhes de suas sofrida mas gostosa vida de negociante de papel.

Precisaria não de uma crônica, porém de um livro inteiro para falar dessa aventura quixotesca do seu Geraldo, vida simples apesar do êxito (sempre foi o mais lembrado para reportagens e entrevistas sobre o assunto dos jornais e TVs, vez em quando estudantes iam lá para ouvi-lo), tão simples que um dia como hoje, sexta-feira, ele estaria sentado em seu velho birô com uma gaveta cheia de moedas, distribuindo-as para uma fila de velhinhos que desde cedo rondavam sua calçada.

Quando eu chegava, nessa ocasião das sextas, invariavelmente perguntava: "Geraldo, tá bom de aumentar essa cota para 5 reais!", no que ele abria um sorriso largo e respondia: "Tá querendo me quebrar!?", e desatava a contar quando fez essa promessa das moedinhas da sexta-feira.

Não tive coragem de ir ao seu velório e enterro, nem de voltar ao velho sebo da 24 de Maio, mesmo sabendo que só tenho boas lembranças de lá, mesmo sabendo que sua viúva Albaniza, seu filho Janderson e sua cunhada Estela levarão adiante essa aventura sem fim de vender sonhos.

Foto do Pedro Salgueiro

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