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Minianimalismos
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Minianimalismos

Talvez por preguiça, sempre tive fascínio por textos curtos. Frases aparadas até quase o miolo. Gracilianos, Rulfos, Moreiras e João Cabrais limando adjetivos. Procurando substantivos que dispensem adereços, penduricalhos. Nenhum preconceito contra os caudalosos rios Euclidianos, Proustianos, Joyceanos, Roseanos. Apenas predileção e pronto. Ponto.

Sempre desconfiei de que nós, os pobres escrevinhadores de vãs malfeitorias, não escolhemos o gênero literário no qual vamos nos expressar. Mas ele, irremediavelmente, nos escolhe. Tenho certo amigo que até pra me passar um número de telefone conta seu dia inteirinho. Outro, inquirido, me deixa apenas fragmentos de suas intenções. Claro que alguns podem, e até devem, ir contra a corrente. Deslizar rio acima, olhos estufados de lama. Alma pesada, mas satisfeita.

Para mim, o "barato" é tentar dizer o máximo com o mínimo de palavras. Mesmo sem quase nunca conseguir.

Há tempos recebi convites dos colecionadores Marcelino Freire (Os Menores Contos Brasileiros do Século XX) e Laís Chaffe (Contos de Algibeira) para participar, com textos mínimos, de duas coletâneas. Tomei gosto pela coisa. Resumi contos antigos. Li Haicais. Reli Dalton Trevisan. Arrumei esmeril, comprei estilete. Lupa de relojoeiro, dedal de sapateiro...

Os perigos do laconismo, da incompreensão total, da pura piada. Quase nunca encontramos o ponto certo. Mil tentativas e pouquíssimos acertos. Vamos tentando pulverizar o mundo, atomizar o cotidiano. Minimalistas que fomos. Minianimalista que somos. Ao pó que retornaremos.

Alguns amigos, recentemente, têm incorrido nessa prática de limar continhos já por demais curtos, numa quase obsessão. Muitos têm feito progressos incríveis nessa arte de quase reduzir a pó histórias,
frases, palavras, intenções.

Resgatei dos meus cadernos de ocioso alguns relatos mínimos. E vão aí para distrair preguiçosos:

MECANISMO

Mesa posta. Pai, mãe e filho regem o silêncio.

Preces.

Novamente.

MEDO NA PRAÇA

Silêncio. O artista sua, lapida suas preces. Aplausos. De novo. O silêncio.

PESO DO MORTO

Noite sem lua. Rasga-mortalha.

— Dorme, pai. Deixa de falar só...

Já no meu segundo livro, O Espantalho, de 1996, eu havia (em vão) tentado:

DALTONIANAS EM FÁ MENOR

A mulher matou o marido. Mandou matar em cima do túmulo. O único pecado dele trocar seu nome por outro e acender velas todas
as quartas-feiras.

***

Havia olhos fugindo de órbita, um coração descompassado. Um medo de ir... outro de voltar.

Havia ossos enterrados no quintal e um medo danado de assombração.

Havia uma multidão de adrenalinas e uma
certa dúvida...

* * *

Enquanto cancão brinca no quintal, deixei muleta, um pé-de-cabra e uma bengala. Deixei um grito preso no elevador.

* * *

Antigas visitas já mortas retornam à antiga sala de visitas. Cumprimentam o cadáver de minha mãe, recebem um aceno eufórico de meu pai moribundo.

— Cala a boca, velho caduco, deixa de falar só.

Grita a negra Suzete, da pia.

 

Foto do Pedro Salgueiro

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