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Loucos & fugas
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Loucos & fugas

Tipo Crônica

Como sobreviver durante uma festa de loucos num país de loucos? A fuga se coloca como solução possível e desejável, mas para onde? Escolhi uma praia que já foi distante e tranquila, que hoje virou um subúrbio de qualquer grande cidade, com todos seus vícios e defeitos. Preferia um Sertão distante, um "meio-do-mato" qualquer longe de tudo e de todos: as estradas assassinas e o cansaço não permitiram tal aventura, os perigos chegaram faz tempo aos recantos sertanejos... Na verdade o perigo chegou longe demais: chegou dentro das gentes. Penetrou nosso frágil coração de humanos ainda humanos.

Instintivamente escolhi reler (mais uma fuga dentro da fuga?) uma escritora neozelandesa, Janet Frame, que foi considerada louca em sua própria terra e que ficou internada num manicômio por oito anos recebendo os tratamentos mais bizarros, até se refugiar na Inglaterra e "conseguir" seguir até o fim de sua aventura como uma pessoa "quase normal", receber prêmios e distinções acadêmicas e morrer "quase famosa". Havia lido o seu único livro traduzido para o Brasil, Rumo a outro verão, onde a personagem, quase sempre ela mesma, lutando contra ela mesma, embora o disfarce de que lute contra um mundo hostil em que ela nunca consegue se adaptar, pertencer.

Nesse belíssimo e estranhíssimo (vamos lendo e percebendo que merece muito mais "íssimos") romance - uma escritora escreve um livro cuja personagem sabemos (pelo menos quem assistiu ao lindo filme Um anjo em minha mesa, de Jane Campion, baseado na famosa autobiografia da escritora) ser ela mesma, mas que por ser pessoal demais, autobiográfico demais, doloroso demais, ela não permitiu que fosse publicado em vida - a "heroína" Grace Cleave (inadaptada, insegura, atrapalhada etc., que é tudo menos heroína) se imagina um pássaro migratório que vai repousar sempre em lugares ignorados, suas penas e elementos de aves passam a fazer parte de sua anatomia de ave em eterna fuga.

Desde a epígrafe de Charles Brasch o romance nos diz - "... e deixando sua baía habitual/os maçaricos desaparecem rumo a outro verão..." - que a autora e sua personagem estão em fuga, rumo ao desconhecido, a outros mundos; mas logo percebemos quão essa vã fuga é dela mesma, e que - mais do que para lugares longínquos e desconhecidos - a sua fuga é de seu inadaptado (mas também desconhecido) mundo pessoal, que sua fuga é para dentro de sim mesma, mundo muito mais vasto e complexo que os exteriores.

Inútil fuga também para o ingênuo e desesperado leitor, que a cada página era despertado pelos "paredões" de sons carnavalescos de doidos identicamente em fugas de suas vidas difíceis e vazias de quase tudo. E, como a personagem/autora em eterna fuga, o desesperado leitor também sempre acorda em um país que é sempre o seu: medíocre, com governantes quase irreais de tão medíocres, com um povo quase irreal de tão medíocre... Acorda em seu mundinho de sempre, numa quarta-feira de cinzas que parece querer punir a todos, mas também a instigá-los (instigar-nos!) a novas (e inúteis) fugas.

Foto do Pedro Salgueiro

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