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Tempo de pestes
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Tempo de pestes

Tipo Crônica

Um amigo, desses antenados com as novidades do mundo, me questiona por que esse coronavírus não está causando no Brasil o mesmo pânico (que pode ser tão preocupante quanto a doença) que em outros cantos do mundo. Cita (atento, detalhista que é) os noticiários da TV e especialmente os rostos assustados dos repórteres internacionais. Penso e, como quase sempre, não consigo chegar a uma explicação plausível; parto então para mais uma de minhas muitas teoriazinhas meio estapafúrdias: Acho que com esse desgoverno que temos, com as loucuras e mentiras que divulgam todos os dias através da internet, para desviar nossa atenção das coisas ruins que nos aprontam, perdas de direitos trabalhistas, desmontes de nossas universidades públicas, desaparelhamento de nossa rica cultura, sucateamento de nossas reservas morais e ambientais, avalanches de preconceitos vários etc. etc. Enfim, frente a tantas coisas ruins que presenciamos nos últimos tempos, esse vírus parece "fichinha" (ou "canja de galinha", pra usar uma expressão mais brasileira) para os patéticos habitantes destes nossos "tristes trópicos".

Lembrei-me de um trecho das memórias de Nélson Rodrigues (A menina sem estrela, que junto com Infância, de Graciliano Ramos, está sempre por perto para ser relido, usado como antídoto contra essas mordidas de cobra cotidianas) em que ele diz sobre a "Gripe Espanhola no Brasil em 1918": "Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade percebeu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos. (...) E foi nesse Rio absurdo que a gripe desabou. (...) Mas a espanhola não fazia nenhuma concessão à vaidade dos mortos. E o apavorante eram a solidão do morto, o abandono e, sobretudo, a humilhação do cadáver. Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: - na varanda, na janela, calçada, na esquina, no botequim".

Nelson termina o capítulo dizendo que, muito mais que os mortos pela espanhola, morreu uma época: "E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer.", e que, conclui mais adiante, (re)nasceria medíocre, explícita, vulgar... no próximo carnaval de 2019.

Fico aqui matutando sobre nossas tragédias atuais, sobre nossas epidemias corporais e espirituais, um século e pouco depois da mortífera espanhola: renasceremos desses flagelos mentais e físicas que nos assolam? Sairemos fortalecidos, combalidos, estupefatos, aturdidos... dessas pestes que nos assolam?

Foto do Pedro Salgueiro

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