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Quarentena: um quase diário
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Quarentena: um quase diário

Tipo Crônica

Saí para o feriadão sem desconfiar da seriedade do quadro, deixando o token enfiado no computador, os documentos de comprovação do IR em cima da mesa, a barra de cereal no pacote entreaberto. Em casa soube, pelo Decreto do governador, da gravidade e urgência da situação.

Primeiramente pensei no que "isso" acarretará às nossas rotinas, as aulas da filha suspensas, o trabalho na repartição por concluir, até o prosseguimento do campeonato de futebol, tudo menos o mais importante: a saúde de todos; só num segundo momento me dei conta do perigo que corremos e, logo, do que fazer pra nos proteger.

Duas idosas na família exigem que tomemos medidas concretas, vigilância severa. Após avaliar a questão (e trocados os telefonemas e mensagens de praxe entre irmãos), decidimos ir pra uma cidade menor (seria a solução mais plausível?), pelo menos naquele instante de pânico; depois fomos contabilizar as desvantagens que aquela solução apressada poderia trazer: atendimento médico mais difícil, encontrar medicamentos, abastecimento alimentar etc.

Devido à distância e estradas ruins deixamos o sertão de lado e partimos em caravana pro Fortim (o clima ameno, caminhadas na praia, peixe fresco, ajudaram na escolha); mas como tudo pode trazer complicações, esquecemos que a região é uma das mais frequentadas por turistas, sendo a praia do Pontal de Maceió quase uma colônia de férias de países europeus. E no dia seguinte já soubemos do primeiro caso na cidade, um francês chegara infectado; foi o bastante pra cidadezinha ficar tensa.

No dia seguinte já sentimos a mudança, o supermercado, sempre cheio, agora permitia a entrada de um número limitado de fregueses; logo cresceu uma imensa fila sob o sol escaldante, um carro de som divulgava pelas ruas a necessidade de todos ficarem em casa (e alertando que a vacinação dos idosos seria domiciliar); aos poucos as ruas foram se esvaziando: a cidadezinha pacata mas pulsante foi virando um deserto.

No sábado falei com um pescador conhecido, e ele anunciou que logo à tarde chegaria a jangada da família com peixe fresquinho, então combinei de ir pegar pela boquinha da noite, quando fui alertado pela irmã de que era no bendito Pontal de Maceió, onde o francês estava confinado em tratamento; mas argumentei que teria como fazer a tarefa de maneira segura.

Só ao sair fui me dando conta de que estamos ficando irremediavelmente neuróticos com a situação, a ponto de termos medos irracionais, pensamentos funestos e pessimistas em demasia; concluindo, enfim, que deveríamos cuidar também dos males mentais que uma pandemia dessas nos traz (mas como nos concentrar para uma leitura, oração, meditação?).

Matutei sobre os preconceitos que estamos criando com alguns comportamentos, grupos e pessoas; irracionalmente passamos a demonizar os que são de fora da nossa aldeia; porém o mesmíssimo medo que sentimos dos estrangeiros eu percebi nos olhos dos moradores da pequena cidade em relação aos que chegamos... Para eles, somos igualmente estrangeiros, pois viemos de "fora", de onde o perigo se mostra mais frequente, mais palpável.

Daqui a pouco, com o agravamento da crise, os estrangeiros serão não mais os de outros países, mas os de outros estados, de outras cidades, de outras ruas, de outras casas, de outras...

 

Foto do Pedro Salgueiro

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