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O caso J.P. Cuenca e a liberdade de expressão
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Plínio Bortolotti integra do Conselho Editorial do O POVO e participa de sua equipe de editorialistas. Mantém esta coluna, é comentarista e debatedor na rádio O POVO/CBN. Também coordenada curso Novos Talentos, de treinamento em Jornalismo. Foi ombudsman do jornal por três mandatos (2005/2007). Pós-graduado (especialização) em Teoria da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

O caso J.P. Cuenca e a liberdade de expressão

Episódio recente, envolvendo o escritor J.P. Cuenca e a plataforma de notícias Deutch Welle (DW-Brasil), no qual ele mantinha uma coluna, é bom exemplo para falar de um assunto - sempre na ordem do dia -, mas cujo debate ganha intensidade nesses tempos aflitivos que põem à prova os brasileiros: a liberdade de expressão.

Aconteceu o seguinte
A partir da conhecida frase: “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”, de autoria do sacerdote francês Jean Meslier (1664/1729), Cuenca publicou a seguinte paráfrase em sua conta no Twitter, no dia 16/6/2020: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”.

Na sequência a DW afastou Cuenca de seu quadro de colunistas, com a seguinte explicação:

“A Deutsche Welle comunica que deixa de publicar a coluna quinzenal Periscópio, de J.P. Cuenca, após o colunista ter escrito, em perfil privado nas redes sociais, mensagem que contraria os nossos valores. A Deutsche Welle repudia, naturalmente, qualquer tipo de discurso de ódio e incitação à violência. O direito universal à liberdade de imprensa e de expressão continua sendo defendido, evidentemente, mas ele não se aplica no caso de tais declarações”.

Jogo persecutório
Por sua vez, Cuenca classificou o comunicada da DW de “covarde e difamatório”, acusando a empresa de cair no “jogo persecutório de elementos fascistas no Brasil”.

Defense-se ainda dizendo que sua postagem não continha discurso de ódio nem de incitação à violência, pois “qualquer um, com um mínimo de leitura” seria capaz de perceber que ele fizera uma “sátira”, atualizando a frase que já teve “diversas encarnações”.

Reclama que a empresa deveria apoiá-lo “contra um linchamento virtual de origem fascista, que contou com dezenas de ameaças de morte recebidas via inbox (caixa privada de mensagens)”. Conclui afirmando que levará o caso até “às últimas consequências”.

Lá vou eu
Defendo a liberdade de expressão da forma mais elástica possível, com o mínimo de obstáculos a limitá-la. O meu guia em casos assim é Raoul Vaneigem, com as palavras registradas em seu livro “Nada é sagrado, tudo pode ser dito - Reflexões sobre a liberdade de expressão”. Na obra, pode-se ler afirmações assim:

- “A liberdade de de expressão é um valor humano, até mesmo em sua liberdade de dizer o desumano”.

- “Não são as afirmações que devem ser condenadas, são as vias de fato.”

- “Conceber todas as liberdades ao humanos e nenhuma liberdade às práticas desumanas.”

Resumindo, Vaneigem diz o seguinte: todos têm o direito de expressar livremente seus pensamentos, por piores que sejam. Porém é lícito - mais do que isso, um dever - impedir a prática de ações desumanas .

E quais seria os limites?
Dois exemplos de Vaneigem. Diante de uma população ou de um grupo vítima de uma ideologia racista e xenófoba, a expressão de ódio seria equivalente a uma “via de fato”, portanto teria de ser contida.

Ele cita a rádio ruandesa “Mil Colinas” que convocava ao massacre da etnia tutsi e de hutus moderados, que deveria ter sido “reduzida ao silêncio” por uma intervenção internacional. (Referência à guerra civil em Ruanda, 1994.)

No mesmo sentido, Vaneigem lembra a “fatwa” (sentença de morte) lançada pelos aiatolás contra o escritor britânico Salman Rushdie. Ameaça que facilmente poderia ser cumprida por devotos insanos, além da recompensa financeira oferecida ao possível matador.

Ou seja, em situações em que os intimidadores dispõem de meios para concretizar a ameaça, a situação “exige mais do que medidas verbais de retorção”.

Paródia
Observando-se o caso Cuenca vê-se facilmente que a paródia criada por ele é apenas isso mesmo: uma piada absolutamente inócua. Óbvio que ele não está se dispondo a sair por aí matando bolsonaristas e pastores. Também não dispõe e de um grupo de seguidores fanáticos dispostos a matar por ele, por exemplo. Certo, sua criação padece da falta de originalidade, porém isso não constitui crime.

A DW pesou a mão ao considerar uma pilhéria “discurso de ódio” (e se fosse uma charge, por exemplo, a atitude seria a mesma?) e errou feio ao demitir o escritor, talvez pressionada pela horda de milícias virtuais. Render-se esse tipo de pressão pode levar a outras capitulações, o que é perigoso.

À direita
Analisemos agora as manifestações organizados por partidários do presidente Jair Bolsonaro. Considero equivocada, como fazem alguns jornais, classificar esses atos como “antidemocráticos”.

A denominação correta seria “atos com reivindicações antidemocráticas”. As manifestações, por si só, não são antidemocráticas, pois o direito de reunir-se pacificamente está inscrito na Constituição.

Porém, quando se suspeita que esses protestos são organizadas por grupos que pretendem golpear a democracia - e tem condições de ir às “vias de fato”, não está mais se falando em liberdade de expressão, mas de atentado contra a ordem democrática. Por isso é preciso investigá-las.

Do mesmo modo têm de ser tratadas as ameaças surgidas nesse contexto. Se um sujeito em um boteco diz que quer perseguir ou matar a autoridades “x” ou “y”, será verificável que o sujeito tomou algumas a mais e está um pouco exaltado - não representando perigo.

Agora, se uma pessoa, líder de um grupo fanatizado - que confessa a posse de armas - faz ameaças diretas a uma autoridade, ou a uma pessoa qualquer, a situação muda completamente, pois os fanáticos são capazes de matar a mando de um “líder” ou em nome de suas crenças.

Para concluir, mais uma frase de Vaneigem:

“É bom não esquecer: uma vez instaurada, a censura não conhece limites, pois a purificação ética se nutre da corrupção que denuncia”.

Foto do Plínio Bortolotti

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