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Como identificar um charlatão, na ciência e na política
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Plínio Bortolotti integra do Conselho Editorial do O POVO e participa de sua equipe de editorialistas. Mantém esta coluna, é comentarista e debatedor na rádio O POVO/CBN. Também coordenada curso Novos Talentos, de treinamento em Jornalismo. Foi ombudsman do jornal por três mandatos (2005/2007). Pós-graduado (especialização) em Teoria da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Como identificar um charlatão, na ciência e na política

"Uma das lições mais tristes da história é a seguinte: se formos enganados por muito tempo, nossa tendência é rejeitar qualquer evidência do logro" (Carl Sagan)
capa - medidas conservadoras de trump (Foto: AFP)
Foto: AFP capa - medidas conservadoras de trump

O texto que segue é um resumo do artigo publicado nesta coluna em 10/10/2022, que reproduzo agora, pois cada vez mais revelador do fenômeno populista de extrema direita que se espalha pelo mundo.

O texto foi escrito a partir do livro “O mundo assombrado pelos demônios — A ciência vista como uma vela no escuro” (1995), de Carl Sagan (1934-1996).

Na obra, o mestre da divulgação científica faz uma defesa apaixonada da ciência e apresenta um “kit de detecção de mentiras” para desmascarar truques de “gurus”, que supostamente desafiam a ciência. Mas o método pode ser usado também para revelar charlatães da política.

A história contada por Sagan é a seguinte:

Em 1988, jornais, revistas, rádios e televisões de Sydney (Austrália) começaram a receber informações como textos, fotos e vídeos para divulgação, a respeito de um “médium” que fazia seu pulso diminuir até o “ponto de morte”, momento em que incorporava uma entidade chamada “Carlos”, “uma alma antiga, cujos ensinamentos constituem tanto um choque quanto uma inspiração”.

O “canalizador” dessa alma era um jovem de 19 anos de nome Jose Luiz Alvarez, “a nova figura dominante da Nova Era”. Ainda segundo as informações, após ter passado por “170 dessas pequenas mortes”, Alvarez teria recebido ordens de Carlos para se dirigir à Austrália. No país estaria para nascer “uma grande estrela que terá profunda influência sobre a vida futura na Terra”.

Acompanhava o material para a imprensa uma lista das principais cidades onde Carlos havia se apresentado, nos Estados Unidos, um videotape de uma tumultuada apresentação na Broadway e uma entrevista à rádio Woop, de Nova York.

A sua chegada à Austrália — onde estava marcada uma apresentação na Ópera de Sydney —, foi apoteótica, com programas de televisão disputando para entrevistá-lo.

Depois de passar por alguns programas, criando polêmicas, Carlos fez sua apresentação no teatro quase lotado: “Seu pulso foi monitorado. De repente parou. Aparentemente ela estava perto da morte. Ruídos baixos e guturais emergiam das profundezas. A plateia estava boquiaberta de admiração e terror. De repente, o corpo de Alvarez adquiriu força. Sua postura irradiava confiança. Uma perspectiva ampla, humanitária e espiritual fluiu da boca de Alvarez. Carlos estava presente”.

Muitos dos entrevistados depois do espetáculo, confessaram ter ficado “comovidos e encantados”.

No domingo seguinte, o programa de TV mais popular da Austrália, o “Sixt Minutes”, revelou que o caso Carlos era uma engodo, uma brincadeira do começo ao fim.

Os produtores entenderam que seria instrutivo verificar com que facilidade se poderia criar um guru ou curandeiro da fé para enganar o público e a mídia. Eles trabalharam com James Randi (1928-2020) um ilusionista que se especializou em combater a pseudociência e desmascarar supostos paranormais, ocultistas e outros charlatães.

A mídia australiana revoltou-se, sentindo-se traída com a “brincadeira”.

O programa que fez a revelação defendeu-se dizendo que a imprensa não fizera nenhum esforço para checar a autenticidade das informações: Carlos nunca se apresentara em nenhuma das cidades listadas no material de divulgação. O videotape com aplausos na Broadway, fora um favor dos produtores, permitindo que Alvarez subisse no palco ao fim de uma peça, quando foi pedido que o público o aplaudisse.

Além disso, não existia nenhuma emissora de rádio como o nome de “Woop” em Nova York, onde supostamente ele fora entrevistado. Todas as informações facilmente verificáveis.

Sagan continua:

“Alvarez e Randi provaram que não é preciso grande coisa para brincar com nossas crenças, que somos prontamente influenciados, que é fácil enganar o público quando as pessoas estão solitárias e famintas por algo em que acreditar.”

“Quando os curandeiros são criticados essas pessoas se apressam em defendê-los. Vários idosos presentes à canalização na Ópera de Sydney ficaram indignados (depois da revelação da farsa): ‘Não importa o que eles digam, nós acreditamos em você’”, disseram a Alvarez.

“A maioria dessas figuras só quer o dinheiro das pessoas. Essa é a boa notícia. Mas o que preocupa é que vai surgir um Carlos vendendo um peixe bem maior — atraente dominador, patriótico, transpirando liderança. Venderá uma guerra, um bode expiatório ou um amontoado mais abrangente de crenças.”

Uma das lições mais tristes da história é a seguinte: se formos enganados por muito tempo, nossa tendência é rejeitar qualquer evidência do logro. Já não nos interessamos em descobrir a verdade. O engano nos aprisionou. É simplesmente doloroso demais admitir para nós mesmos que fomos enganados. Se deixarmos que um charlatão tenha poder sobre nós, quase nunca conseguimos recuperar nossa independência.”

A primeira edição do livro de Sagan é de 1995, e ele morreu em 1996. Portanto, não viu a ascensão do populismo de extrema direita no século XXI. Mas ao enquadrar os charlatães da pseudociência, Sagan visualizou seus correspondentes na política, como Jair Bolsonaro e Donald Trump

Foto do Plínio Bortolotti

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