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Boca de Inferno
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Boca de Inferno

Tipo Crônica

Eurídice era o diabo! Mulherzinha casca grossa, cruel, fofoqueira, mais fria do que uma noite sem amor. Não à toa, afirmavam os cidadãos daquela pacata cidadezinha esquecida, acabou sozinha: "E tem homem que aguente aquilo?"

Morava Eurídice em uma casa alta, a mais elevada da rua principal. Às tardes, sentava-se atrás da balaustrada, observando a todos de sua posição superior. Quando em vez, gritava com os passantes, os criticava, revelava seus segredos compartilhados pela funesta "rádio fofocaria" da cidade. Soberba, não temia ninguém e adorava uma discussão, na qual, sem escrúpulos, saía vitoriosa.

Todavia, um novo pároco, cansado de ouvir o seu nome malcitado pelos fieis, a alertou: "Acautelasse, pois daquele jeito poderia cair no inferno!" Ora, o medo de ser rebaixada à condição de inferno, logo ela, detentora de um espírito elevado - e não movida por outro sentimento meritório -, a fez refletir e tentar amansar seu coração tão "verdadeiro".

Nos dias seguintes, passou a bater à porta daqueles que havia injuriado. Para surpresa deles, ela figurava um sorriso tão desconhecido quanto sinistro, acompanhado de um discurso de falsas moralidades cristãs. Às mãos, uma cestinha de pães, doces, geleia ou biscoitos. Certa de sua recompensa espiritual, após um curto e desconcertado abraço, saía pela rua, pescoço altivo, ao olhar basbaque daqueles que, logo, logo jogariam aquelas oferendas pela janela, com receio de estarem envenenadas.

Embora soasse falso e interesseiro, ela, reconhecemos, se esforçava. Por conta daquele abraço, ao cruzar a porta de sua casa, corria para tomar um demorado e esfregado banho. Chegava a doar ou jogar fora a roupa que usara. Diante de uma abundante raiva de si, se inclinava ao oratório: "O Senhor está vendo, hein?"

Entretanto, algo se deu. Aquelas pessoas começaram a confabular sobre o estranho comportamento da "bruxa". Cogitaram ter ela alguma culpa secreta, íntima, algo grande, uma fraqueza qualquer. O que seria? Fato: a criatura estava ficando mole!

Baseados nessa certeza, a vizinhança deixou de temê-la. Olhavam-na com desdém, sorriam cinicamente ao cruzar com ela no mercado, às vezes dando-lhe até cotoveladas e esbarrões. Foi na feira, que aproveitando-se dessa fase de paz e amor, uma incauta, antes perseguida, olhou-a com uma aversão singular e atirou: "Bruxa velha solteirona!"

Eurídice não acreditou no que ouviu. Teve vontade de espancar, morder a orelha e matar aquela infeliz, mas, lembrando-se do alerta do padre, segurou como nunca seu ímpeto atroz, caindo numa convulsão e agonia, seguida por uma espetacular ânsia de vômito.

Em meio a todos os curiosos, a mulher se contorcia, enguiando, enguiando até vomitar um imenso dragão. A fera, saindo de sua boca, rugia aterrorizante, macabra e, voando com as suas negras asas de morcego, cuspia fogo nas casas do entorno, colocando o povo para correr - com exceção dos já desmaiados - e depois partindo em direção ao horizonte.

Na semana seguinte, Eurídice era de uma docilidade impressionante, dando bons-dias, desta vez sinceros, livre agora da antiga azia que lhe tomava a boca do estômago há anos. Mesmo assim, todos, desde então, a tratavam com excessivo respeito, imaginando que outros terríveis monstros estariam abrigados, ali, no ventre daquela mulher.

Foto do Raymundo Netto

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