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Bigode
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Bigode

Tipo Crônica

Bigode estava de saco cheio da mulher. Ela, todo dia, batia o ponto: "Seu preguiçoso, velho, muquirana..." Até aí, tudo bem, nem ligava. Porém, aquele dia lhe seria intolerável: "... e nem limpa mais esse... esse... bigode horroroso!" Ah, isso não. Havia ido longe demais! Aquele homem, desde o primeiro buço, trazia altivo e orgulhoso aquele volumoso ornamento nasal, a ponto de até ser chamado e reconhecido por ele. E, ela, logo a sua amada, lhe fazia deboche?: "Nunca gostei desse troço. Suportei!" Diante da severa profanação, como se alvejado no peito, Bigode pediu o divórcio.

Os primeiros dias foram terríveis, mas numa noite de cava tristeza, após comer um "cai-duro" de trailer de calçada, sem saber o que fazer nem para onde ir, sentiu uma extravagante liberdade: não precisava chegar em canto algum, dar satisfação a ninguém, nem hora de voltar para casa. Despertou-se ali uma juventude magnífica e com ela uma súbita autoconfiança, o esquecimento do luto divorcial e o desejo de conquistar um novo amor, um "brotinho", como dizia.

Passou a caminhar na praça, frequentar academia e bares noturnos. Contudo, sendo ele um don Juan à robertiana moda antiga, ainda do tempo de prometer um mar de rosas à namorada, não se deu bem. As mulheres não eram mais as mesmas. Mais ousadas e diretas, algumas até se chegavam, mas na primeira cantada açucarada, olhavam-no de cima a baixo e pulavam fora. Queriam divertir-se apenas, nada mais. Parecia que o seu nietzchiano penduricalho perdera o seu suposto poder sedutor.

Julgando a velhice culpada por tal aversão indesejável, confessou-a ao colega, que de pronto decifrou: "Amigo, é esse seu bigode. Ninguém mais usa isso... assim. Se você tirasse esse bigode, acho que a mulherada ia pirar."

Desolado, como se caminha ao brutal fuzilamento, mas ansioso para sentir de novo o calorzinho de um par de coxas, dirigiu-se à barbearia e, enlagrimado como um bebê ao perder o doce, sentenciou: "Tira... tira tudo, tudo!"

Para a sua surpresa, ao se ver no espelho, reconhecera aquele rosto adolescente há muito esquecido, quase estranho, e sorriu um sorriso distante, terno e gentil. Ali, assistia a sua juventude ilustrada por sonhos e certezas carimbados na face imberbe.

Naquela mesma noite, em trajes joviais e almiscarado dos pés à cabeça, um seguro Frederico - era esse o seu nome - sentou-se ao balcão de bar de boite bem frequentada. Lançava agora aquele desperdiçado e oculto sorriso ao mundo, como se a ele revelasse um tesouro, as tábuas da lei, um acontecimento.

Foi então que percebeu uma moça - uns 20 e poucos anos, apetitosa e belíssima em seu corpo viçoso, coberto por um suficiente vestido a realçar o corpo saliente - que, lhe parecia, não desviava o olhar do seu. Não acreditava e disfarçou a afetação. Piscou presunçosamente e a saudou com o copo, como a consentir a sua aproximação. E ela, acredite, veio. A cada passo dela, pulsava nele um tremor terremótico, lascivo, o entusiasmo de primeiro homem a pisar na lua, quando ouviu da jovem: "Sabia que o senhor é a cara da minha finada mãezinha?"

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