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Lockdown
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Lockdown

Tipo Crônica

ATCHIIIMMM! O que outrora poderia ser entendido como um desgracioso espirrozinho na intimidade e segurança do lar, naquele momento gerava grave inquietação, uma perturbação da ordem social. Alardeando como uma sirene, Tomásia, paramentada com máscara e luvas, deflagra uma ação nervosa, agitando um borrifador com desinfetante. Bate no marido, grita que saia da cama e reclama a colcha trocada há pouco, rebolando-a no balde. Pergunta se o espirro pegou na parede, ensaiando com grossas luvas cor de rosa passar a esponja nela. Manda que tome o enésimo banho. Ele, que antes descansava solenemente em sua cama, grita: não aguentava mais tomar tantos banhos, lavar as mãos já descascadas de sabão e o troca-troca de roupas. Ela exigia: "Quer que eu morra, quer?".

Tomásia não perdia um noticiário, além de cutucar o aplicativo do celular de instante em instante. Numa perplexidade quase eufórica, perseguia o marido pela casa, atualizando-o daquilo que não o interessava: "Mais mortos. Mais de mil todos os dias". Puxava do raciocínio e fazia umas contas nos dedos: "Deus me livre! Como não me preocupar?".

O marido, cujo ouvido estava cansado do soar da trombeta portátil do apocalipse, não aguentou e saiu nu de casa. "Se sair não volta mais, hein?", avisou.

Entre as notícias, a milagrosa vacina que viria dar fim ao arborvírus, um parasita com estrutura parecida com a de plantas e grande capacidade de contágio.

Quando a súbita vacina foi anunciada e distribuída a todos os países do mundo, parecia a aguardada vinda do Messias, não se falava em outra coisa. Ali, o fim do pesadelo.

Tomásia, pela janela e pela TV, assistia ao povo nas ruas, em pleno Carnaval, se tocando, se agarrando, se beijando, lançando gotículas no ar como se fossem fogos de artifício: "Estão loucos?", pensava, apertando o borrifador, como talismã, contra o peito inconformado. Também silenciava quando os vizinhos lhe batiam à porta: "Acabou, dona Tomásia. Pode sair, criatura!". Não saía nem a pau! Havia até quem achasse que morrera durante a pandemia, pois nunca mais fora vista.

E assim, os próximos meses: filas extensas de vacinação, multidões aglomeradas em festas que rompiam noites e dias, a salvação do mundo, o novo mundo: Aleluia!.

Porém, com o tempo, ela percebeu o esvaziamento das ruas e o silenciamento da TV e do rádio. Nada nem ninguém nas redes sociais. Inquietou-se. Decidiu, bem equipada, sair às ruas - pois não encontrou ninguém em seu prédio. Quando chegou à avenida, teve uma visão escatológica: centenas de milhares de corpos tomavam as calçadas, a pista, as lojas. Corpos cinzentos, deformados, com pústulas verdes de onde rompiam galhos e folhas de árvores. Em alguns, grossas raízes saiam das mandíbulas escancaradas. Noutros, mal se percebia a origem humana tamanha a deformação. O silêncio só era quebrado pelo vento corrente e pelo barulho das aves que aos montes disputavam os restos de carne ainda possíveis naqueles cadáveres vegetativos. "A vacina...então...". Ainda matutando, Tomásia tirou a incômoda máscara e completou o sorriso e o peito daquele ar úmido e puro da manhã, na certeza esperançosa e azul de que agora, sim, estava segura.

Foto do Raymundo Netto

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