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Ora, Sapos?
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Ora, Sapos?

Tipo Crônica

Pereira gastava muito dinheiro com dermatologistas.

Há tempos, inexplicavelmente, assistia à sua pele engrossar, descamar, tornar-se áspera e grudenta. O porquê daquilo ninguém sabia. Enquanto isso, o homem mais parecia um gato de tanto se lamber e se esfregar com pomadas, cremes, loções e sabonetes por horas intermináveis, e nada resolvia aquela aparente tragédia doméstica. Para piorar, em uma noite sinistra, não conseguiu dormir. Uma coceira profunda tomava-lhe o corpo e o juízo. Na manhã seguinte, ainda torpe, ao confrontar o espelho... Bufo: havia virado um sapo!

Naquele momento, sentiu-se aliviado, pois temia ser algo mais sério. Afinal, a coceira passou e o mistério estava ali resolvido. Retirou o pijama e, ainda diante do espelho, admirava-se. Pensou: "Gosto do verde..." Foi quando sentiu uma sede danada e correu para debaixo do chuveiro, onde se postou por prolongado tempo.

Após o banho, tentou vestir-se para ir ao trabalho, mas sentindo-se sufocado colocou apenas a gravata e o chapeuzinho, saltando apressado para tomar a sua habitual condução.

Nem é preciso dizer o quanto o coitado penou. Não é fácil enfrentar as extensas filas, o empurra-empurra e a multidão que entope os transportes urbanos. Com sua estatura e aquelas patas não conseguia se segurar em canto nenhum. Apenas por um milagre não foi pisoteado no bonde pelo populacho insensível às suas debilidades.

No escritório não seria diferente. Recriminaram o seu atraso e a deselegância de seus trajes. Também se tornou alvo de chacota alheia, logo apelidado de "Pereireca". Aliás, com os novos e grandes olhos, enxergava melhor do que antes e descobria os colegas que lhe apontavam o dedo, riam-se dele e apostavam naquela demissão.

Pereira sentiu-se humilhado, derrotado, solitário como uma freira. Como nunca, sentia na pele verruguenta um constrangimento moral próprio das coisas desnecessárias da vida.

Seu retorno para casa naquele dia foi devastador. Não havia sapo mais desanimado no mundo. Foi quando passava pela calçada a Rosie, uma moça de cabelos curtos, piercing no nariz e braços tatuadamente coloridos. Ao ver aquele sapo, parnasianamente aguado, arrastando a maletinha, seu coração ambientalista e nerd partiu-se em cacos. Soluçava o Pereira com o dedo em riste e o lábio inferior tremulento: "Meu pai não foi rei!"

Empática, Rosie o abrigou em seus braços sinceros, aduziu a face anfíbia aos seus lábios e admitiu-lhe um beijo largo e quase escatológico.

Daí, aconteceu o que acontece todos os dias quando as mulheres beijam os sapos: eles desencantam! Só que, em vez de príncipe, havia apenas o nosso Pereira.

A Rosie, que não era muito afeita a homens e se dava melhor com os bichos, ali mesmo rompeu a relação, bateu as asinhas e venceu o horizonte para sempre.

Só posso dizer que o Pereira um dia encontraria alguém que o amasse do jeitinho que ele era, homem ou sapo, e que nas noites de chuva, após tórrido instante amoroso, poderíamos ouvi-lo a coaxar, enquanto comia moscas, na beira do rio.

Foto do Raymundo Netto

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