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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

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Tipo Crônica

"N-Não é nada dis-disso, gente! Deixa eu explicar..."

Janaína era uma jovem irrevogavelmente tímida e solitária. Havia quem dissesse, por pura troça, que a moça possuía o segredo do manto da invisibilidade, tal seria a sua capacidade de "passar em branco" fosse onde fosse. O exagero não era, porém, distante da realidade. Trabalhava naquele escritório há 5 anos. Entrava calada e saía muda todos os dias, de forma que um vaso de planta ornamental era mais popular.

Naquele dia, no entanto, um detalhe despertou a curiosidade geral: um chupão no pescoço de Janaína! Sim, a mancha roxa a tomar extravagante o seu pescoço pálido soava como um escândalo. As colegas, que nunca lhe dirigiam qualquer palavra, quase em coro, a rodearam: "A noite foi quente, hein, garota? Abre o jogo!"

Janaína, num misto de surpresa e falsa indignação, corou abruptamente, enquanto gaguejava a sua frustra tentativa de dispensáveis explicações. As colegas a acalmavam: "Besteira... quem nunca, não é?" Nesse instante, ela notou pousar em seu ora tentador pescoço os olhares maliciosos de seus colegas, que a assediariam pelo resto do dia, afinal, a inesperada revelação de tigresa tinha lá as suas delícias.

Janaína custava a acreditar no que acontecia. Sentia-se como subitamente abduzida de seu mundo paralelo, escuro e sem graça. E o mais engraçado de tudo é que aquele suposto chupão era, na verdade, fruto da simples picada de um incômodo inseto. Aliás, em meio à excitação daquela "estreia", sentia-se também envergonhada, pois que o seu Romeu, sabia ela e somente ela, tratava-se mesmo de um borrachudo!

E mais: nunca havia tido sequer um namorado. Quando não estava no batente, cumpria o dia a ler mangás, contos góticos e eróticos, a escrever fanfics, colecionar figuras de ação e se entupir de sorvete e batatas fritas, assistindo a temporadas intermináveis de animes. Fora isso, era dormir e sonhar com a vida que queria ter. E, para nossa surpresa, era aquela: ser o centro de atenções, ouvida, desejada, amada e invejada! Assim, em terra de sapos, de cócoras com eles, desatou a exercitar a língua e a imaginação, ocupando o ouvido das colegas com ousadas e vibrantes histórias de amantes e namorados imaginários. Elas, boquiabertas, animavam-se e não se conformavam por não terem nunca reparado na pequena e atarracada Janaína, uma hedonista, libertina, e por que não dizer, devassa!

Não parou por aí: nos dias seguintes, em banho de loja, abandonou as rotineiras malhas do Dragon Ball e Sailor Moon, os seus inseparáveis tênis de cano alto e passou a usar blusas mais justas, com razoável decote, e uma saia de poderosa fenda, a equilibrar-se sofridamente nos calçados, mas mantendo seu mundo cenográfico, o que duraria por mais alguns dias, nos intervalos do cafezinho, na qual era uma espécie de Sherazade do edredon, uma fabuladora de profanos prazeres.

Todavia, é sabido, desde sempre, tudo passa! Caindo na rotina de todas as coisas móveis e sem haver nada de novo debaixo do sol, passou rapidamente a ser ali qualquer uma. As colegas aos poucos cansaram da mesmice de suas narrativas, então, mais adocicadas, além do que, nunca apresentava nem era vista ao lado de tais garanhões e aquele chupão logo ingressaria na modalidade "troféu antigo".

Janaína endoidou. Para ela, antes ignorada do que esquecida. Sentia-se traída, um verme. Então, não foi de estranhar nem de causar espanto, quando certo dia ela não compareceu ao escritório, estando hospitalizada após ter colocado a cabeça dentro de um vespeiro.

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